Quem passa horas navegando pelas redes, pode ter se deparado nas últimas semanas com vídeos excêntricos – e até assustadores – com famosos e figuras históricas em situações inusitadas.

Um deles mostra o Rei do Pop, Michael Jackson, roubando um balde de frango no KFC, ou atendendo clientes em um caixa do Walmart. Em outra leva, a rainha Elizabeth II leva o público ao delírio ao pontuar contra a lenda do basquete Kobe Bryant.

Essas cenas têm em comum o fato de terem sido criadas por meio do Sora 2, a versão mais recente da ferramenta de Inteligência Artificial generativa para vídeo da OpenAI.

Lançada no início de outubro, a aplicação chegou para bater de frente com o Veo 3, do Google, e suas criações se espalharam como incêndio nas redes sociais.

“É uma espécie de ChatGPT para a criatividade, e a sensação é de diversão”, declarou Sam Altman, CEO da OpenAI em um post feito em seu blog.

Em poucas horas, vídeos gerados pela ferramenta mostravam Altman praticando pequenos furtos em lojas, ou roubando artes do diretor Hideo Miyazaki, do Studio Ghibli, invocando a polêmica da febre de artes geradas por IA que se apropriavam do estilo do estúdio japonês.

Miyazaki, um cineasta reverenciado por obras como “A Viagem de Chihiro” e “Castelo Animado”, já afirmou publicamente que quer distância desse tipo de tecnologia.

Há alguns anos, nem o mais pessimista dos lordes de Hollywood poderia imaginar que uma avalanche de pessoas teria o poder de contar com artistas e personagens famosos em cenas de seus vídeos, construídos de forma convincente. Isso sem ter de desembolsar um caminhão de dinheiro na produção.

Ou, ao menos, eles não acreditavam que isso se daria tão cedo.

Ferramentas de IA generativa se sofisticaram a ponto de criar intervenções em imagens icônicas
Ferramentas de IA generativa se sofisticaram a ponto de criar intervenções em imagens icônicas

Casos como o da atriz Scarlett Johansson, que em 2024 ouviu a própria voz ser incorporada a uma assistente virtual, ajudaram a levantar questionamentos sobre os perigos do uso inapropriado da tecnologia. Mas agora a crítica ganhou intensidade.

Após o lançamento do Sora 2, a CAA (Creative Artists Agency), agência de talentos americana que representa gigantes como Brad Pitt, Martin Scorsese e Meryl Streep, divulgou uma nota acusando a OpenAI de explorar o trabalho dos artistas.

Para a empresa, a ferramenta oferece um “risco significativo” à indústria e a seus integrantes, profissionais que estão diante e a atrás das câmeras.

Nos corredores de Hollywood, a questão que ronda é: a OpenAI e as demais empresas com tecnologias semelhantes acreditam que humanos, escritores, artistas, atores, diretores, produtores, músicos e atletas merecem ser compensados e creditados pelo trabalho que criaram em virtude dos vídeos reais feitos pela IA generativa?

Nos Estados Unidos, há exceções que permitem o uso de material protegido por direitos autorais, o chamado “fair use” (uso justo). Essa regra permite, em certas condições, o uso de obras protegidas sem necessidade da autorização do autor, mas, de acordo com especialistas, empresas como a OpenAI cruzam a linha aceitável dessa utilização.

“O Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos deixou claro que alguns usos dificilmente se encaixariam nessa exceção, como cópia de livros inteiros para gerar conteúdo”, explica Marina Garrote, coordenadora de pesquisa do Reglab, centro que desenvolve estudos sobre regulação e tecnologia, entre outros temas que impactam a sociedade.

Não demorou para o CEO da gigante da IA se pronunciar comunicando mudanças: maior controle “granular” aos artistas e criadores, permitindo que elas optem se querem ou não ser parte da ferramenta, e é claro, compensá-los pelo uso de imagem.

Uma medida concreta veio na semana passada. A OpenAI bloqueou o Sora 2 de criar vídeos retratando Martin Luther King Jr. após uma ação movida na Justiça pela família do icônico líder dos direitos civis.

Enquanto vídeos torpes, como os que colocam o físico Stephen Hawking fugindo da polícia, continuam se multiplicando na internet, a OpenAI anunciou oficialmente que se tornará uma empresa com fins lucrativos, o que vai permitir bilhões em novos investimentos e invenções ainda mais atraentes para instigar a “criatividade” do público.

Por aqui, o Sora 2 ainda não está disponível, mas pessoas com acesso, sejam de fora do país ou usando VPN (rede virtual privada), já começaram a integrar personalidades nacionais em suas criações.

“A legislação brasileira de direitos autorais não tem uma regra equivalente ao fair use. Então, em tese, a utilização de imagens protegidas seria uma violação à lei”, afirma Marina.

Produtoras do mercado audiovisual brasileiro observam o cenário e tentam filtrar o que consideram valioso nas ferramentas de IA, tentando encontram um meio-termo e estabelecer uma maneira ética e legal de usá-las.

A O2 Filmes, gigante brasileira que conta com obras como “Cidade de Deus”, “Xingu” e “VIPs” no currículo, decidiu investir na área há pouco mais de um ano, apostando em uso de ferramentas que podem diminuir custos e auxiliar profissionais reais, dispensando aplicações que operam no “campo mágico” do Sora 2.

Desenvolver efeitos especiais, por exemplo, não é uma tarefa fácil e muito menos barata, e a IA pode ser uma aliada não para gerar efeitos do zero, mas como um facilitador para os criadores, diminuindo o custo e tempo de uma produção.

“Usamos ferramentas para renderizar variações em cima de um modelo que a gente mesmo desenhou, com uma câmera que a gente decidiu, com pessoas reais envolvidas em todo o processo”, conta Thomas Frenk, diretor da Bot, empresa de inteligência artificial da O2 Filmes, à ISTOE Dinheiro

Segundo ele, os avanços nessa área vão ajudar pequenas produtoras a assumirem projetos maiores, mas reforçou que algumas estão assustadas com os impactos do avanço.

“Realizamos reuniões com outras produtoras e não dá para negar que o impacto do Sora será enorme, com locais de menor regulação servindo como campo de teste. Primeiro nas redes sociais, depois na publicidade, televisão, com nuances e adaptações para cada universo. É um cenário difícil de prever”, afirmou.