Menos de quatro dias após o tombamento provisório, operários começaram a instalar tapumes e a iniciar os preparos para a demolição da Vila Liscio, localizada na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, perto do Complexo Esportivo do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo. Após uma denúncia, uma vistoria da Subprefeitura da Vila Mariana feita nesta sexta-feira, 12, identificou que janelas e portas foram removidas irregularmente. Os responsáveis foram multados e afirmam que desconheciam a decisão que determinou a preservação temporária dos imóveis.

Um vídeo enviado ao Estadão nesta sexta-feira, 12, mostra que as aberturas de algumas casas foram danificadas, o que gerou o temor de parte dos moradores do entorno e ativistas da área de patrimônio cultural de que os imóveis seriam completamente derrubados para a construção de edifícios, como ocorreu semanas atrás com residências vizinhas, nas Ruas dos Bombeiros e Manuel da Nóbrega. A empresa responsável pela obra tinha uma autorização municipal para a demolição válida apenas até o dia 10, a qual não poderá ser renovada diante do tombamento provisório.

À tarde, a reportagem presenciou o processo de instalação de tapumes na entrada da vila. O procedimento foi interrompido pouco antes das 17 horas, com a retirada de parte das placas. No entorno, passantes lamentavam a possibilidade de demolição da vila, enquanto alguns funcionários comentavam entre si que era “o progresso”. Como o local é parte de um estudo de tombamento realizado por especialistas da Prefeitura, qualquer intervenção precisa ser autorizada pelo poder público e demolições são proibidas.

Em nota, a JSTX Participações, ligada ao empresário Fernando Simões, afirmou que desconhecia o tombamento provisório e destacou que os imóveis foram comprados no fim de 2022, quando o pedido de preservação ainda não tinha sido aberto na Prefeitura, o que ocorreu em fevereiro. “Tão logo tomou conhecimento do início do processo de análise de tombamento no Conpresp para algumas casas, imediatamente suspendeu as obras nesses imóveis e manteve as atividades exclusivamente naqueles que não fazem parte do processo de análise de tombamento”, finalizou.

Casas geminadas, casarios e sobrados de cerca de oito vilas, travessas e ruas sem saída foram temporariamente tombados na segunda-feira, 8, pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). A decisão inclui também o Edifício Lorena, o Conjunto Tamandaré – projetado pelo premiado arquiteto e urbanista paranaense Jaime Lerner – e uma residência criado pelo arquiteto espanhol Antonio Moya. A estimativa é que as construções datem do período entre as décadas de 1930 e 1960.

O tombamento é provisório até a entrega de um estudo técnico aprofundado por técnicos da Prefeitura e a apreciação final pelos conselheiros, processo que costuma levar mais de um ano. O conselho apontou que a deliberação com urgência foi motivada pelas demolições e crescente verticalização da região após a derrubada de casas geminadas que estavam originalmente listadas no requerimento.

A decisão se baseou em um estudo preliminar de duas arquitetas do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), da Prefeitura, que constataram a “possibilidade de perda” e o “potencial de valor cultural e histórico” dos imóveis. A resolução de abertura de estudo de tombamento destaca “os atributos ambientais e afetivos do lugar”, a presença de imóveis de importância arquitetônico-urbanística e “o desejo manifesto de parcelas da sociedade pela preservação de um modo de vida que permanece em áreas centrais da cidade”.

A discussão sobre a preservação das vilas ganhou força na última semana, após a gestão Ricardo Nunes (MDB) apresentar uma proposta de revisão da Lei de Zoneamento que facilitará o avanço de edifícios nesses locais. Em 2019, um episódio semelhante gerou uma mobilização pelo tombamento de um conjunto de sobrados da Avenida Conselheiro Rodrigues Alves, na Vila Mariana, zona sul, e do que restou de uma vila operária no Tatuapé. Quatro anos depois, a decisão final sobre os pedidos ainda não foi emitida.

Segundo estudos preliminares anexados ao processo, a Vila Liscio é composta por casas e sobrados de estilo eclético, com tijolos à vista e alguns ornamentos nas fachadas. O projeto é da década de 1930, do italiano Augusto Bernadelli Marchesini, conhecido pelo Theatro São Pedro, na região central. A obra foi encomendada pelo empresário também italiano Luiz Liscio, industrial que era referência no setor moveleiro, especialmente pela produção de camas patentes.

Até o ano passado, funcionavam no local um hostel, uma unidade da lanchonete Subway e outros tipos de estabelecimentos, que deixaram o endereço após a venda. Com exceção das intervenções recentes, as casas são consideradas em bom estado de conservação e estavam até meses atrás em pleno funcionamento, com acesso aberto e sem portões para a calçada.

O pedido de tombamento da vila foi aberto em fevereiro pelo advogado Arthur Badin, morador da região, com o apoio do arquiteto e pesquisador João Bittar Fiammenghi, doutorando em Arquitetura e Urbanismo na USP. Um abaixo-assinado com os nomes de mais de 20 engenheiros, docentes, arquitetos e lideranças de associações de bairro foi anexado ao processo, com a assinatura de figuras conhecidas do meio, como as professoras Raquel Rolnik e Bianca Tavolari, respectivamente da USP e do Insper, e a urbanista Lucila Lacreta, do Movimento Defenda São Paulo. A proposta também é apoiada pela Associação de Moradores da Vila Mariana (AVM).

“A cidade tem espaços em que é possível se preservar um modo de viver de antigamente”, disse Badin ao Estadão. “Essas casas estão ocupadas e têm vida. Tem lugares em que as vilas viram cortiços e, às vezes, ficam abandonadas e vão se deteriorando. Mas não esse é o caso. Todos os lotes estão ocupados, bem adensados e bem cuidados”, destacou. Ele argumenta que a cidade precisa conciliar diferentes tipos de residências e modos de vida. “Não dá para a cidade inteira virar um Itaim Bibi. É preciso conciliar, não precisa transformar tudo em prédio.”

Já Fiammenghi avalia que esses imóveis têm uma importância especialmente como um “testemunho da história da urbanização de São Paulo”, “que é entender o ambiente da cidade como algo a ser preservado”. Isto é, que têm valor especialmente pelo o que significam em conjunto do que por ter uma construção icônica, por exemplo.

iversidade de imóveis, desde vilas construídas para aluguel até um edifício dos anos 1960. “Em um espaço compacto da cidade, a gente tem diferentes formas de produzir habitação, com diferentes linguagens arquitetônicas e com resultados urbanos muito ricos para os cidadãos, com uma qualidade ambiental muito relevante”, afirmou. “Por serem ruas, vielas, você pode andar por isso, o que traz uma qualidade para aqueles que moram e frequentam.”

O tombamento provisório determinado pelo Conpresp inclui um dos raros edifícios projetados por Jaime Lerner, morto em 2021 e uma das principais referências mundiais em urbanismo, mas menos conhecidos pelos trabalhos arquitetônicos. Trata-se do Conjunto Almirantes, que contempla dois edifícios residenciais paralelos e em curva, localizado na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 3.185. Segundo levantamento preliminar anexo ao estudo de tombamento, o conjunto data da década 1960. Ambos os edifícios são residenciais.

Outro imóvel que precisará ser preservado é a chamada Casa Moya & Malfatti, na Rua dos Bombeiros, 50. Segundo o levantamento preliminar, foi projetada e construída em 1941 pelo arquiteto espanhol Antonio Moya, que integrou a Semana de Arte Moderna de 1922. A obra tem estilo normando.

O conjunto de imóveis do estudo de tombamento foi batizado de “Mancha dos Bombeiros”, por ficar próximo de uma área antes conhecida como “Invernada dos Bombeiros” até a criação do Parque do Ibirapuera. Hoje, faz parte majoritariamente do distrito Moema.

Entre as vilas, outra que se destaca é a Vila Calabi, que abrange 16 casas geminadas ao longo da Rua Oswaldo Moreira Pompeo. Segundo o estudo, o projeto é de autoria do arquiteto italiano Daniele Calabi, com construção em 1942.

Os demais imóveis se espalham por vias da região, como as Ruas Leme, Tutóia, Manual da Nóbrega, Professor João Marinho e Álvaro de Menezes, além da Travessa João Xavier de Oliveira, dentre outras.