A ação conjunta da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ministério Público do Trabalho que em 23 de fevereiro conseguiu resgatar 207 pessoas mantidas em condições análogas à escravidão enquanto trabalhavam para vinícolas da região gaúcha de Bento Gonçalves turvou a reputação da indústria do vinho no Brasil, em especial a do Rio Grande do Sul, estado que concentra a maior parte da produção nacional. Os relatos dos trabalhadores, quase todos contratados na Bahia como mão de obra temporária para o período da safra de uvas da Serra Gaúcha, revelam a crueldade a que foram submetidos. Sob ameaça de armas, eles eram impedidos de deixar de seus alojamentos até quitar dívidas contraídas para adquirir itens básicos como água e produtos de higiene pessoal. Alguns afirmaram à polícia que sofreram castigos físicos, com choques elétricos, uso de spray de pimenta e surras de cassetetes e cabos de vassoura. Forçados a trabalhar em turnos que iam das 4h às 21h, receberam alimentos estragados nas refeições. Coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo no Rio Grande do Sul, Henrique Mandagará afirmou que “o nível de agressão física contra os trabalhadores foi o que chamou mais a atenção”. Uma situação terrível, vergonhosa — e que poderia ter sido evitada.

Segundo as investigações do Ministério Público do Trabalho, as vítimas foram atraídas por falsas promessas de remuneração de até R$ 4 mil mensais feitas pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, sediada em Bento Gonçalves, capital nacional do vinho. Ela recrutava candidatos em cidades baianas. O empresário baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana, dono da Fênix, foi detido na operação. Pagou fiança de R$ 40 mil e responde em liberdade. Sua empresa terceiriza trabalhadores para a centenária vinícola Salton, além de duas das maiores cooperativas do setor no País, a Aurora e a Garibaldi, ambas criadas em 1930 e que garantem o sustento de milhares de famílias de pequenos produtores de uva. E é aí que a história fica mais complicada. Acusar Santana de ser o responsável por manter trabalhadores escravizados não isenta de responsabilidade quem o contratou. A negligência, nesse caso, se torna conivência. Na segunda-feira (27), o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, convocou uma reunião extraordinária da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo para apurar o caso.

IMAGEM AFETADA Sede da vinícola Salton, em Bento Gonçalves (RS). A empresa que projeta faturar R$ 500 milhões este ano afirmou que o episódio foi um caso isolado e que tem prestado todo apoio às autoridades. (Crédito:Divulgação)

ESTADO E IGREJA Enquanto as vítimas eram acolhidas pelos serviços sociais e retornavam às suas casas, a repercussão do escândalo ganhou contornos ainda mais lamentáveis. Depois de viver dias de inferno, os trabalhadores foram acusados de ter culpa pelo tratamento recebido. Em discurso na Câmara de Caxias do Sul (RS), o vereador Sandro Fantinel (Patriota) afirmou que a situação foi causada pelo fato de serem baianos: “A única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor. Era normal que se fosse ter esse tipo de problema. E que isso sirva de lição”. O partido disse ter expulsado o vereador pela declaração. Mas essa não foi a única tentativa de justificar os maus tratos. Uma nota divulgada em caráter oficial pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves atribui a culpa à política de transferência de renda do governo federal: “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.”

Até a Igreja Católica se manifestou, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Qualquer tipo de trabalho em condições que ferem o respeito pela dignidade humana não pode ser aprovado. Todas as denúncias devem ser investigadas nos termos da lei”, afirmou a CNBB em nota, que prossegue com uma advertência para as paróquias sobre a escolha de fornecedores de vinhos: “É recomendável que se busquem, para a celebração da missa, vinhos de proveniência sobre as quais não existam dúvidas a respeito dos critérios éticos na sua produção”. Isso vale para todos os consumidores da bebida. Não é aceitável compactuar com práticas que aviltam a dignidade humana. De acordo com o fundador e CEO da Humanizadas Pedro Paro, especialista em avaliação ESG baseada em inteligência de dados, quando a empresa não dá atenção para as práticas dos terceiros “ela está sendo negligente com a gestão da cadeia de valor da própria empresa, e correndo o risco de ser conivente e ter seu nome envolvido com práticas abusivas e eventuais crimes cometidos”.

Do lado das empresas envolvidas, a reação foi protocolar. A Cooperativa Vinícola Garibaldi, com 450 associados, divulgou uma carta aberta na qual afirma ter recebido com “surpresa e indignação, as denúncias de práticas análogas à escravidão exercidas por uma empresa terceirizada, contratada para suprir a demanda pontual e específica do descarregamento de caminhões no período da safra da uva”. Afirmou ainda que o contrato de prestação de serviço foi encerrado e que permanece à disposição das autoridades até que o caso seja elucidado. A Vinícola Aurora afirmou que “não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão”. Segundo a cooperativa líder em produção de vinhos e suco de uva no País, a contratação de trabalhadores terceirizados se deve à escassez de mão de obra na região — o que é perfeitamente legítimo. Ela informou ainda que repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil mensais por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas. Para a Salton, que prevê faturar R$ 500 milhões este ano, “trata-se de incidente isolado” e as medidas cabíveis frente ao tema foram tomadas. É pouco para se retratar de algo tão grave e que mancha a imagem das empresas, da região e do setor.

CORTE A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) informou ter suspendido a participação das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton em feiras internacionais, missões comerciais e eventos promocionais. As três fazem parte do programa Wines of Brazil, que apoia 23 vinícolas em atividades de promoção para vendas internacionais. O Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul (MTE-ES) convocou audiências com as três empresas para apurar as responsabilidades de cada uma. O proprietário da Fênix, Pedro Santana, propôs ao MET-RS o pagamento de um total de R$ 600 mil aos 207 trabalhadores, a título de danos morais.

Infelizmente, essa não foi a primeira vez que autoridades flagraram trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil. Desde 1995, foram resgatados de cativeiros 60.251 pessoas. Apenas em 2022, o total de casos chegou a 2.575, e 175 empresas estão na lista vermelha do trabalho escravo, dos quais 112 são identificados como fazendas, sítios ou propriedade rural. Uma realidade que causa repulsa e cuja superação depende de ações conjuntas de governo, empresas e sociedade.

O manifesto das entidade em defesa do trabalho digno

Documento assinado em conjunto pela Prefeitura de Bento Gonçalves e órgãos como Uvibra e Sindivinhos evoca s história de acolhimento da Serra Gaúcha e firma compromisso para garantir o respeito à mão de obra na cadeia vitivinícola

“A Serra Gaúcha tem uma história de trabalho e acolhimento. Essa terra recebeu nossos antepassados que — com esforço e boa-fé — fortificaram uma sociedade justa, fraterna e humana. Uma comunidade empreendedora, que construiu oportunidades e leva para todo o mundo essa identidade cultural”. Assim começa o texto que resultou do encontro liderado pela Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves na segunda-feira (27) com representantes do poder público e de entidades representativas do setor, entre elas a União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra) e a Comissão Interestadual da Uva. Em conjunto, o grupo afirmou que “a ocorrência não representa as práticas do setor, as vinícolas, as mais de 20 mil famílias de produtores”.

Segundo o manifesto, foi iniciada uma força-tarefa de fiscalização em alojamentos, “visando verificar as condições oferecidas aos trabalhadores”, o que será consolidado em um programa permanente. Ainda de acordo com o documento, será criada a Central do Trabalhador, que “atenderá diretamente os operários, recebendo denúncias e orientando os profissionais”. A iniciativa é louvável, porém pouco adianta quando os trabalhadores são mantidos em alojamentos vigiados e sem o direito de ir e vir. Mais importante é a decisão de aprimorar a fiscalização e ouvidoria, de forma a “assegurar que as ações de terceirizados também sejam acompanhadas com rigor”, como afirma o manifesto.

“Evoluir é uma necessidade e um compromisso que assumimos publicamente, respeitando valores e princípios tão caros a uma comunidade que não pode ser estigmatizada por episódios que não representam sua essência”, conclui o texto.