Zoraya sabe que a dor nunca vai passar. Embora seus seis filhos a ajudem a “ser forte e lutar”, o fantasma do seu próprio abuso sexual sempre lhe trará lembranças de um horror ainda maior: o estupro de sua filha, de um ano e meio, no convulso noroeste da Colômbia.

Há milhares de histórias como a de Zoraya no país, onde “cerca de 17.100 mulheres e meninas sofreram ataques à sua liberdade e integridade sexual no âmbito do conflito armado desde os anos 1980”, segundo um relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), divulgado nesta quinta-feira.

“Vai me deixar marcada para o resto da vida”, diz à AFP Zoraya, afro-colombiana de 32 anos, ao relatar sua tragédia, que começou há cinco anos em Quibdó, capital do departamento de Chocó, onde vive deslocada pela violência do conflito armado.

Ainda se culpa por “não ter olhado para trás” quando, no final de 2011, não notou que sua bebê, que tinha deixado com os avós para resolver um trâmite, saiu pela porta, atrás dela.

“Tiraram seu vestido, a fralda, e introduziram um bastão pelo ânus, perfurando seu intestino delgado. Quando me ligaram e a vi…”, conta, e começa a chorar.

Testemunhas lembram da poça de sangue quando encontraram a menina. Foi levada às pressas a um hospital e passou um mês em cuidados intensivos. Hoje “tem uma cicatriz muito grande em quase todo o abdome”.

Zoraya cansou de ir e vir da Promotoria. Nunca soube quem foi o responsável. Só sabe que não pôde voltar a colocar na menina o vestido que usava naquele dia. “O rejeitava, e tive que jogar fora”, diz, preocupada porque, embora um psiquiatra tenha descartado sequelas, ela não está convencida.

“Era muito pequena, mas as pessoas lhe contaram e lhe fazem perguntas”, afirma Zoraya, que prefere não dar seu nome verdadeiro e que hoje tenta seguir em frente apesar das extorsões de bandos criminosos em Quibdó.

Estupros coletivos

“A vida aqui é dura, difícil”, diz Zoraya.

Ela não sabe se o pai dos seus filhos, que trabalha em uma mina, está vivo ou morto. “Muitas vezes ficamos sem comer”, aponta.

Teve que fugir do seu povoado, ameaçada por “um grupo armado ilegal” em 26 de dezembro de 2013.

Estava preparando o café da manhã quando seu filho mais velho lhe alertou sobre um barulho “de botas”. Então apareceu um homem camuflado, armado, escoltado e a quem “chamavam de chefe”, o mesmo que já a assediava havia algum tempo. Exigiu que preparasse frango e peixe e que fizesse sexo com ele.

“Me agarrou, quis me beijar e não deixei. Bati nele, arranhei. Caímos no chão, começamos a lutar”, diz Zoraya.

O homem então disse a outro filho, que presenciava a cena: “Se à tarde eu voltar e você estiver aqui, boto fogo na casa”.

A maioria das mulheres atendidas pelo CICV são negras e camponesas, aponta o relatório, que reúne casos de estupros coletivos, “cometidos por entre três e oito pessoas”.

Invisibilidade

Em Chocó, “o conflito é muito forte (…) e a violência sexual é uma das armas mais usadas para controlar a população civil, é como uma arma de guerra”, explica Lorena Mosquera, assistente de saúde do CICV em Quibdó há seis anos.

Gravidezes indesejadas, abortos traumáticos, doenças venéreas, danos físicos, famílias partidas e mães solteiras: o flagelo tem consequências “muito graves”, acrescenta a enfermeira, mencionando casos de mulheres desde “um ano e meio até 65 anos” de idade, e também de homens.

Além disso, há a “invisibilidade”: por culpa, medo de ser estigmatizadas e de sofrer represálias, “a subnotificação é muito, muito grande”, diz sobre este fenômeno, que segundo o CICV é “recorrente e afeta várias gerações dentro de uma mesma família” pela “persistência do conflito” de mais de meio século, que já deixou mais de 260.000 mortos e 6,9 milhões de deslocados.

“É tão vergonhoso”, afirma no relatório María Eugenia Urrutia, fundadora da Afromupaz, uma associação em Bogotá que ajuda vítimas de agressão sexual.

Urrutia também foi vítima de uma agressão sexual, custou a superá-la e teve que abandonar sua Chocó natal. Chorou, se trancou em casa. Até que um dia começou a cantar. A música de Chocó a curou: “Com os cantos, abraçando meus filhos, reagi”.