03/11/2019 - 8:30
O muro que separa o câmpus da USP dos seus vizinhos e moradores da comunidade São Remo não vai cair. Ele vai continuar lá, cumprindo suas funções de ordem prática e seus propósitos inconfessáveis: como o de traçar um limite claro entre a academia e a favela. Mas, convenhamos, transpor muros não é um problema para a educadora e ativista social Eliana Sousa Silva, de 57 anos.
Na tarde quente de quarta-feira, Eliana, e um grupo de alunos da própria USP, cruzou o portão de pedestres que serve para controlar o fluxo entre as duas realidades. O objetivo da visita era dar prosseguimento à coleta de dados e ao censo da comunidade – informações que em breve devem servir para que moradores, entidades privadas e o próprio poder público planejem (e executem) programas de infraestrutura, saúde, educação e segurança. Além da São Remo, as comunidades nas proximidades da USP Leste, Jardim Keralux e Vila Guaraciaba, também passam pelo mesmo processo.
O censo das comunidades é parte do trabalho coordenado por Eliana, atual titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. A professora já realizou um projeto semelhante no complexo da Maré – onde é diretora da ONG Redes da Maré (em um complexo de 16 favelas e cerca de 140 mil moradores, no Rio). “Já existem trabalhos da USP e de professores sobre as comunidades locais. Não quero ser alguém de fora que vem se intrometer, mas alguém que veio contribuir na reflexão, que veio pensar projetos e trazer a experiência da vivência das favelas do Rio”, afirmou.
Do outro lado do muro, na São Remo, Eliana acompanhou o trabalho dos recenseadores (38 estudantes da USP que também são moradores ou ex-moradores das periferias). Eles caminharam pelas vielas, desviaram das motos e ouviram a população. Por perto, Eliana observou com um orgulho indisfarçável – e talvez, por alguns momentos, também tenha vislumbrado a própria trajetória.
No início da década de 1970, a família de Eliana deixava a cidade de Serra Branca, na Paraíba, com a intenção de fugir da seca e conquistar condições melhores de vida no Rio. Aos 7 anos, e com mais cinco irmãos, Eliana foi morar em um cubículo na Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré. Desde sempre, os pais foram envolvidos com projetos da Igreja Católica na comunidade. “Eram muito atuantes, participavam de reuniões, organizavam festas e foram responsáveis pela chegada da primeira capela na Nova Holanda”, contou. Como o restante da família, Eliana também se envolveu com visitas domiciliares aos mais pobres, levando cestas básicas e transformando-se em líder de grupo de jovens. “Sempre fui muito curiosa, me dei conta muito cedo da realidade ao meu redor.”
Mas a primeira experiência marcante de Eliana aconteceu com a chegada dos pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na comunidade. Por meio de um projeto do Ministério da Educação (MEC), eles recrutaram moradores da região (principalmente jovens) para se transformarem em agentes comunitários de educação e saúde.
Chapa Rosa
Em 1984, com 22 anos, Eliana concorreu à presidência da Associação de Moradores de Nova Holanda pela Chapa Rosa, nome que simbolizava o papel feminino nas lutas comunitárias (atualmente, ela é uma das curadoras do Festival Mulheres do Mundo). A eleição, naquela ocasião, foi a primeira por meio do voto direto da comunidade – e ganhou espaço na mídia justamente por ser uma eleição direta acontecendo em um País que ainda vivia os últimos capítulos de uma ditadura.
Esteve à frente da associação por seis anos – período em que Nova Holanda viu chegar a energia elétrica, a coleta de lixo e a rede de água e esgoto. Passado esse período, a própria Eliana começou a questionar o seu papel como presidente. “As pessoas começam a te ver como uma espécie de prefeito… Eu queria ser mais do que uma ativista local. Fui fazer mestrado (ela é formada em Português-Literatura pela Universidade Federal do Rio, a UFRJ, com mestrado em educação e doutorado em serviço social, ambos pela PUC-Rio) e refletir um pouco sobre o meu papel”, disse.
O processo de criação da Redes da Maré começou em 1997, com a constatação de que apenas 0,5% da população local tinha acesso à universidade. A primeira iniciativa foi a criação do Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré. Aliás, o curso ainda existe, e a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, foi uma de suas alunas. Mas foi em 2007 que a Redes de Desenvolvimento da Maré foi formalizada como instituição. Como conta no livro Testemunhos da Maré, um incidente ocorrido um ano antes, em 1.º de outubro de 2006, dia de eleições nacionais, fez com que uma ideia que já existia ganhasse urgência: Eliana testemunhou um menino de 3 anos, que estava no colo de seu avô, ser atingido por um tiro de fuzil. Tiros que, segundo relatos, partiram de um camburão da Polícia Militar.
Na ocasião, Eliana seguiu com uma multidão de moradores até um batalhão para denunciar o crime ao comandante. Apesar da movimentação, a população não foi ouvida. A partir daí, a ONG foi desenvolvendo processos estruturantes de defesa dos direitos básicos da comunidade. Durante esse processo de institucionalização do projeto Redes da Maré, Eliana sofreu pressões e ameaças de organizações criminosas. Como da vez em que foi “convocada” por um garoto com um fuzil para conversar com um amigo.
“Olha, o amigo gostaria de falar com a senhora. Ele pediu que fechasse a instituição, avisasse que não vai ter mais aula hoje, e, quando for lá pelas 8 horas, a gente vem buscar a senhora aqui. A senhora não pode sair daqui enquanto nós não chegarmos, entendeu?” Assim, Eliana foi levada ao encontro de um chefão do tráfico – que quis tirar satisfação sobre o funcionamento dos projetos e seu alcance. “Já fui ameaçada dos dois lados. Atuo na comunidade, mas não preciso me relacionar com criminosos.”
Este ano, a Redes da Maré voltou ao noticiário. Mais de 1,5 mil cartas e desenhos foram reunidos pela ONG e entregues à Justiça com a petição de que fosse restabelecida uma ação civil pública que regula e restringe as operações policiais no complexo da Maré desde 2017 – mas que havia sido suspensa em junho de 2019. A Justiça restabeleceu parâmetros mínimos para as ações na comunidade, como a exigência da presença de ambulância e o veto a operações no horário de entrada e saída das escolas. “O governador foi aos jornais dizendo que a decisão é um absurdo, que iria recorrer até ao STF e a Maré estava querendo era se transformar em um terreno livre para venda de drogas – e sabia quem estava por trás disso.” Apesar do atual estado das coisas, das pressões e, claro, do medo, Eliana se considera otimista. “Sempre fui. Tento captar o que tem de positivo. Ver as coisas desse ponto de vista é desafiador.”
Série pretende mostrar bons exemplos de gente que transforma a cidade
Daniel Fernandes, Editor de Metrópole
“Guardiões das cidades invisíveis” é uma série de perfis quinzenais preparados pelo repórter Gilberto Amendola. A ideia é apresentar um conteúdo propositivo e que pretende ser inspirador a partir da vida de personagens que atuam ou atuaram para transformar a vida de comunidades carentes das principais cidades brasileiras.
A proposta surgiu após convite de Tomas Alvim, cofundador do Arq.futuro e coordenador do Insper, para o Estado visitar o Jardim Colombo, um pedacinho da imensa “cidade” de Paraisópolis, na zona sul da capital, em uma sexta-feira pra lá de abafada do último outono paulistano. Alvim me levou até um terreno em aclive. Ele estava com mato crescente.
Dali, a comunidade já havia tirado por volta de 50 caminhões de lixo – a ideia é transformar o que era um lixão em uma praça para a própria comunidade aproveitar nos momentos de folga. A série que começa neste domingo não foi, mas bem que poderia ter sido, inspirada no livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, quando a cidade se transforma de um conceito geográfico em algo que dialoga com a experiência humana. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.