03/08/2020 - 9:00
Internado com covid-19 em uma UPA do Rio, Antônio conseguiu na Justiça o direito de ser transferido para um leito de UTI. A liminar, porém, não foi cumprida a tempo. O paciente morreu após esperar dois dias pela transferência. A história não é exceção. Somente no Estado do Rio, ao menos 730 pessoas morreram entre abril e junho sem suporte necessário, à espera de um leito de enfermaria ou UTI, segundo a Defensoria Pública do Rio.
Evandro também morreu esperando. Mesmo com falta de ar, não pôde ser entubado pois as unidades de referência para covid em Macapá, onde ele vivia, não tinham medicamentos sedativos e anestésicos necessários para o procedimento. Evandro provavelmente também não foi a única vítima da falta do insumo. Desde maio, hospitais de todos os Estados brasileiros registram escassez ou desabastecimento desse tipo de medicação. O Ministério da Saúde foi oficiado na época pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) sobre o problema, sem que uma solução definitiva tenha sido apresentada.
Já Jorge até chegou a ter leito, respirador e medicação, mas a assistência veio tarde demais. Ele só conseguiu ser internado em um hospital público de São Paulo na quarta vez em que procurou ajuda. Nas duas primeiras, foi mandado de volta para casa. Quando finalmente foi hospitalizado, o quadro já era crítico e ele morreu dias depois.
Assim como Jorge, outros brasileiros não tiveram acesso a atendimento precoce. Uns foram internados quando o estado já era grave. Outros morreram em casa. Só na capital paulista, dobrou o número de óbitos por problemas respiratórios ocorridos em domicílio durante a pandemia.
No caso de Juraci, o que demorou foi a liberação para se afastar do trabalho. Mesmo com idade avançada e histórico de doença crônica, a técnica de enfermagem de 72 anos só foi dispensada do hospital onde atuava na capital paulista cerca de 20 dias após a doença chegar à cidade, quando o cenário já era de transmissão comunitária. Nos dias anteriores ao seu afastamento, reclamou a familiares da escassez de máscaras.
Três dias depois de ser dispensada, começou a ter sintomas do novo coronavírus. Onze dias mais tarde, não resistiu.
O caso de Juraci também não foi o único. Ao menos 176 profissionais de saúde já morreram de covid no País desde o início da pandemia. Alguns não haviam recebido Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados, o que pode ter facilitado a infecção.
Antônio, Evandro, Jorge e Juraci não foram mortos apenas pelo coronavírus. Foram também vítimas da falta de leitos, do desabastecimento de medicamentos, da demora no atendimento, da falta de cuidado com os profissionais de saúde – problemas que poderiam ter sido solucionados ou minimizados com melhor planejamento e eficiência nas ações de Estados, municípios e governo federal.
É certo que, em muitos casos, a doença mata mesmo que todos os recursos médicos sejam empregados. Em outros tantos, atrasos ou falhas no atendimento podem ser determinantes para a evolução de um paciente.
O Estadão conta, abaixo, a história desses quatro brasileiros que teriam maior chance de sobrevivência se houvessem recebido a assistência adequada. Além destas, o País já soma mais de 90 mil mortes e pode atingir nesta semana a triste marca de 100 mil vítimas fatais do novo coronavírus.
Rio
APOSENTADO FICOU SEM LEITO DE UTI
O aposentado Antônio Alves Gomes, de 72 anos, foi uma das 730 pessoas a morrer entre abril e junho no Estado do Rio à espera de transferência para um hospital com mais recursos. Nem uma decisão judicial que obrigava a Prefeitura do Rio a encaminhá-lo imediatamente para um leito de UTI foi suficiente para garantir o tratamento. O idoso morreu após esperar dois dias pelo cumprimento da liminar.
Gomes ficou cinco dias internado na UPA Cidade de Deus, na zona oeste do Rio. Ele foi levado ao local no dia 5 de maio pelo Samu, após sentir dificuldade para respirar. Ao chegar à unidade, conta a família, a equipe médica não queria recebê-lo.
“Ele ficou uma hora do lado de fora. Primeiro, falaram que não tinham vaga”, relata a neta de Gomes, Jennifer Rodrigues Lopes, de 30. “Depois, uma médica disse que ia interná-lo, mas que lá não tinha recursos para casos graves.”
Dois dias depois, o quadro de saúde do aposentado piorou e, segundo a família, ele foi colocado em ventilação mecânica. Voltada para atendimentos de urgência, a UPA não era a unidade mais adequada para o idoso. Jennifer decidiu procurar a Defensoria Pública para entrar com uma ação na Justiça e conseguir um leito de UTI em hospital de alta complexidade.
“Fiquei das 7 horas às 21 horas na UPA esperando o laudo para anexar ao processo. Quando me entregaram, veio errado, era de outro paciente. No dia seguinte, a Defensoria entrou com a ação”, conta Jennifer. “No próprio dia 8 de maio já saiu a decisão para ele ser transferido. Se não houvesse vaga em hospital público, a Prefeitura deveria pagar leito privado.”
A família esperou por dois dias. No fim da tarde do dia 10, foi chamada à UPA. “A gente achou que era a transferência.
Mas avisaram que ele tinha morrido”, relata Jennifer. Ela acredita que a falta de cuidado e de estrutura da UPA podem ter sido as responsáveis pelo agravamento do quadro do avô.
A Secretaria Municipal do Rio argumentou que o paciente recebeu atendimento adequado. “O senhor Antônio passou por exames e tratamento com antibióticos e suporte de oxigênio – via nasal – para combater os sintomas, mas, infelizmente, evoluiu para óbito”, informou, em nota.
Segundo a secretaria, ele estava internado em uma sala que dispõe de equipamentos de CTI e havia sido incluído no sistema estadual de vagas logo no primeiro dia. O órgão não informou, porém, por que o paciente não teve prioridade para a UTI, apesar da decisão judicial e do grave estado de saúde.
Sobre a morte de 730 pacientes à espera de uma transferência no Estado, a secretaria informou que “não teve conhecimento do levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e nem reconhece os dados como oficiais”. Ressaltou que criou 1.590 leitos para pacientes com covid-19.
SP
MONTADOR ESPEROU MUITO POR INTERNAÇÃO
Foram necessárias quatro idas a unidades de saúde para que o montador de móveis Jorge Alexandre da Silva, de 53 anos, conseguisse uma internação. Na primeira delas, em 17 de abril, ele procurou o Pronto-atendimento de São Mateus, unidade municipal na zona leste de São Paulo, com sintomas de gripe.
De acordo com a família, os médicos não pediram nenhum exame adicional. Só aplicaram uma injeção e o mandaram de volta para casa. Quatro dias depois, ele piorou e passou a sentir dificuldade para respirar.
Silva, então, retornou à unidade. Desta vez, fez radiografia dos pulmões, que mostrou comprometimento da função respiratória. Mesmo assim, a equipe tornou a liberar o paciente.
“Como meu pai estava muito ruim, a esposa dele pediu para alguém da família levá-lo de carro até o Hospital Sapopemba. Não dava para ir para casa daquele jeito”, conta Rafaela Maiara, de 24, filha de Silva.
Na terceira tentativa, desta vez no Sapopemba, os médicos suspeitaram de covid, mas não havia testes. O paciente, então, foi levado para o Hospital da Vila Alpina. “Quando viram a radiografia, falaram que 80% dos pulmões estavam comprometidos”, diz Rafaela.
Tatuapé
DEMORA PARA LIBERAR TÉCNICA DE ENFERMAGEM
Apaixonada pela profissão, a técnica de enfermagem Juraci Augusta da Silva seguia trabalhando aos 72 anos, mesmo após a aposentadoria por idade. Não abandonava a rotina de cuidado ao outro nem quando estava fora dos hospitais e fazia trabalho assistencial com um grupo de amigas.
Quando o coronavírus chegou a São Paulo, no dia 25 de fevereiro, as filhas e os netos dela ficaram preocupados. Juraci também era hipertensa e transplantada. “Ela fez transplante de rim há três anos. Tomava medicamentos de imunossupressão, o que aumenta o risco de ter baixa imunidade”, conta uma das filhas, a enfermeira Ana Paula da Silva, de 51.
Por ser profissional de saúde – ela atuava no Hospital Municipal do Tatuapé, na zona leste de São Paulo – Juraci estava mais exposta ao vírus. E pior: na época, faltavam equipamentos de proteção individual (EPIs), segundo relato da idosa à filha.
“Ela tinha de ter sido dispensada logo, mas eles não liberaram inicialmente. Ela dizia que tomava cuidado quando dava, porque não tinha máscara para todo mundo.” De acordo com a filha, Juraci só foi liberada em 16 de março, 20 dias após o primeiro caso ser registrado na cidade e quatro dias depois de a capital já estar em transmissão comunitária da doença.
Em 19 de março, a técnica de enfermagem começou a se sentir mal. “Começou com diarreia. Ela até achou que podia ter a ver com o transplante. Chegou a ir ao hospital, foi medicada, mas voltou para casa.”
Juraci piorou nos dias seguintes e teve febre, tosse e falta de ar. “No dia 22, levei ao hospital de novo e ela foi entubada na mesma madrugada. De lá não saiu. Morreu cinco dias depois.” Ana e a família acreditam que Juraci foi infectada no trabalho. “Um colega de plantão dela morreu na mesma semana. Eles tinham de ter afastado mais cedo todos que eram do grupo de risco.”
A Prefeitura disse que lamenta a perda de Juraci e afirmou que ela estava afastada desde 14 de março. O órgão informou ainda que todas as unidades de saúde da capital seguiram a portaria que estabeleceu que servidores com mais de 60 anos, em funções administrativas, poderiam fazer teletrabalho. A Prefeitura não deixou claro qual era a regra para os demais funcionários, como Juraci.
Sobre a falta de EPIs, a administração afirmou que garante os itens para colaboradores e pacientes e que o consumo de máscaras cirúrgicas nos 11 hospitais administrados pela Autarquia Hospitalar Municipal, da qual a unidade do Tatuapé faz parte, passou de 75 mil em fevereiro para 280 mil em março e abril. “Todas as unidades de saúde tiveram seus estoques abastecidos.”
No Vila Alpina, Silva foi internado e entubado, mas não resistiu. Morreu em 2 de maio. “Se o comprometimento chegou a 80%, em algum momento foi de 10%, 20%. Se tivessem feito algo antes, talvez ele poderia ter sido salvo”, diz a filha. Ela reclama ainda que, na unidade, ele foi tratado com hidroxicloroquina sem autorização da família.
Rafaela lamenta também o fato de o pai ter se exposto ao risco por não poder parar de trabalhar. “Desde o começo da pandemia, eu já falava para ele ficar em casa. Ele dizia que não queria sair, mas que precisava trabalhar”, conta. “A classe trabalhadora está desassistida. Parece que ninguém vê.”
Mesmo em luto, a jovem segue atuando no coletivo São Mateus em Movimento para ajudar famílias. “Reforcei a minha luta para que outras famílias não precisem se expor ao risco que meu pai precisou correr.”
A Secretaria Municipal da Saúde disse lamentar a morte de Silva. A pasta confirmou que ele passou duas vezes pelo Pronto-atendimento de São Mateus, mas justifica que os profissionais seguiram o protocolo do Ministério da Saúde. Na primeira ida, ele passou por avaliação clínica, foi medicado e liberado. Na segunda, teve uma radiografia solicitada, “sendo diagnosticado com pneumonia e indicada antibioticoterapia para tratamento em residência”.
Já a Secretaria Estadual da Saúde, responsável pelo Vila Alpina, confirmou que ele recebeu hidroxicloroquina. O órgão justificou que não foi pedida autorização da família porque não havia essa obrigatoriedade na época. De acordo com a pasta, o uso do medicamento foi amparado em nota do Ministério da Saúde de 27 de março e em parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 16 de abril.
Macapá
SEM SEDATIVO, ENFERMEIRO MORREU
Sem estrutura adequada, nenhum dos dois centros de saúde abertos em Macapá exclusivamente para cuidar de doentes com covid-19 foram capazes de salvar a vida do enfermeiro Evandro da Silva Costa, de 42 anos.
O profissional de saúde começou a sentir os sintomas da doença em 13 de maio e procurou assistência no Hospital de Clínicas da cidade, onde trabalhava. A unidade, porém, não era referência para o novo coronavírus e ele foi transferido para o Centro Covid-2, uma das estruturas abertas na pandemia.
Costa foi internado em 14 de maio, mas a unidade ainda não estava totalmente equipada para os casos mais graves. “Apesar de ser centro de referência, não estava operando integralmente. Naquele dia, ele me mandou mensagem dizendo que estava jogado, sem alimentação nem remédios. E estava piorando”, conta o advogado Amerson Maramalde, de 42, amigo de Costa.
Na manhã do dia seguinte, Costa deixou de responder mensagens porque seu celular descarregou. Preocupado, Maramalde pediu a um profissional do Samu que estava no hospital para checar o estado de saúde dele. “Ele me disse que o Evandro estava extremamente ofegante, com saturação de 47%. Começamos a ver a possibilidade de transferência para o Centro Covid-1, que tinha mais estrutura”, conta.
Maramalde e outros amigos de Costa, a maioria profissionais de saúde, confirmaram que havia vaga na outra unidade. Mas sedativos, anestésicos e relaxantes musculares para a entubação estavam em falta. “Eles disseram que, contanto que a gente conseguisse os medicamentos, eles internavam.”
Familiares e colegas iniciaram então uma força-tarefa.
“Quando deu 17h30 daquele dia, conseguimos os medicamentos e a bomba de infusão. Confirmei a transferência para o Centro Covid-1, mas aí recebemos a informação de que ele tinha falecido”, conta o advogado, que representa a família de Costa em uma ação contra o Estado do Amapá por negligência.
O enfermeiro deixou mulher, dois filhos, uma enteada e uma neta. “Ele era diabético, hipertenso, já chegou ao primeiro hospital ofegante. Era para ter sido colocado na UTI. Ele não foi vítima só do vírus. Foi vítima de negligência pela falta dos medicamentos”, afirma Maramalde.
A Secretaria Estadual da Saúde do Amapá não respondeu aos e-mails e telefonemas do Estadão. Já o Ministério da Saúde informou que agiu “imediatamente” após receber as informações das secretarias sobre a falta de medicamentos para entubação. A pasta diz que entregou 992,2 mil unidades compradas da indústria nacional e outras 54,8 mil importadas. Afirmou também que realizou, no último dia 27, licitação para aquisição de anestésicos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.