DINHEIRO ? A que o sr. atribui a crise de energia e qual a sua avaliação sobre a estratégia do governo para enfrentá-la?
MURILlO MENDES ?
Em toda a minha vida, presenciei muitas crises e épocas de transição. Na minha avaliação, esses períodos são sempre positivos, porque permitem o exame e a consciência de problemas que antes ficavam amortecidos. Por exemplo: sem energia elétrica, um insumo básico, não existe desenvolvimento, progresso e nada mais. Todo mundo sabe que o equilíbrio fiscal é algo fundamental. Mas será que só isso basta? Portugal, na ditadura de Salazar, foi um dos países mais estáveis do mundo em matéria de equilíbrio fiscal e estabilidade monetária, mas regrediu enormemente. Foi um período de ordem e regresso. As crises, portanto, servem para subverter a tranqüilidade e a falta de visão das elites. As soluções só aparecem após as crises. Só acho que a postura do governo foi infeliz, pois, embora esse problema da falta de energia fosse plenamente previsível, ocorreu uma tragédia, que vitimou a sociedade. O governo então decidiu fazer com que a vítima pagasse pelos seus erros. Isso tudo é muito importante para que a sociedade aprenda a resolver seus problemas e perceba que o governo é quase sempre o problema e nunca a solução.

DINHEIRO ? O sr. crê em um novo modelo de gestão econômica no País após todos esses problemas?
MENDES ?
Acho que as repercussões dessa crise irão muito além do problema da energia elétrica e é esse o aspecto positivo. Hoje, nós estamos voltando à era pré-Juscelino Kubitschek, que foi o homem que deu uma guinada no Brasil após o esgotamento de um modelo econômico anterior. Toda sua política foi fundada no binômio energia e transportes. São duas áreas em que o Brasil regrediu muito. Só não vê quem não quer. Nos transportes, há um verdadeiro genocídio. Nas estradas brasileiras, morrem mais jovens a cada ano do que morreram jovens americanos na Guerra do Vietnã. Estamos, de certa forma, voltando à pré-história moderna. Acho que a crise atual servirá para resgatar o desenvolvimento, mas não naquele sentido pejorativo que lhe foi dado por alguns analistas, como se houvesse uma incompatibilidade entre disciplina fiscal e crescimento. Não existe essa exclusão. Pelo contrário. É só ver o que acontece nos Estados Unidos. Lá, eles só produziram grandes superávits fiscais porque o país viveu um período de grande desenvolvimento.

DINHEIRO ? O sr. viveu o auge do período desenvolvimentista e muitos analistas dizem que as grandes obras de infra-estrutura plantaram a semente da inflação que viria nas décadas seguintes…
MENDES ?
Esse argumento é totalmente falacioso. Na época dos grandes investimentos no setor elétrico, o Brasil foi modelo de eficiência e seriedade. A corrupção e a ausência de competição eram coisas inexistentes. O País construiu um sistema elétrico integrado exemplar. Técnicos do Banco Mundial vinham ao País para tentar replicar a experiência brasileira no resto do mundo. Esse processo foi interrompido quando os modismos mudaram. Sou de uma época em que os heróis do Brasil eram os homens da engenharia, que sonhavam construir uma infra-estutura de ponta. Depois, os heróis passaram a ser os mágicos da trambicagem financeira e dos derivativos. Hoje, como eles estão meio desmoralizados, só sobraram os pagodeiros. Voltando ao desenvolvimento, não havia qualquer relação de causa e efeito entre expansão e inflação. É evidente que quando se busca o desenvolvimento sem qualquer tipo de recurso pré-existente, cria-se um processo inflacionário. Mas no Brasil não foi isso o que aconteceu. Foi o crescimento que gerou recursos para a continuidade do processo de desenvolvimento. Foi justamente a expansão da infra-estrutura que permitiu a consolidação de toda a base industrial no País. Era um processo saudável e auto-sustentado. Isso também desenvolveu o auto-respeito do brasileiro. Antes do Juscelino, a elite local difundia a tese de que o Brasil não poderia ultrapassar a atividade agrícola. Todo o processo inflacionário que ocorreu nos anos 80 e 90 tem muito mais a ver com a desordem do Estado e do sistema político do que com o desenvolvimento dos anos 60 e 70.

DINHEIRO ? Nesse novo modelo para o setor elétrico, como seria a participação do Estado?
MENDES ?
O problema não está em se ter um modelo público ou privado. Pode-se ter uma opção em que o Estado tenha obrigações maiores ou menores. Ao longo da história, isso varia de acordo com as circunstâncias políticas e econômicas. Filosoficamente, sou a favor de uma participação menor do Estado, desde que haja uma regulação eficiente. Mas há muitos exemplos de privatizações malfeitas no Brasil, contra os interesses da sociedade, que acabaram sendo um incentivo ao monopólio de interesses privados, muitas vezes associados com interesses públicos. Qualquer que seja o modelo, o Estado é sempre responsável pela organização ou pela desorganização da sociedade. A ordem institucional é hoje o bem mais escasso no Brasil.

DINHEIRO ? Na estratégia de guerra, o governo incluiu um artigo na Medida Provisória do racionamento, que o dispensa de fazer licitações na construção de novas usinas. O sr. acha isso correto?
MENDES ?
Eu não veria nenhum problema nesse artigo, desde que a escolha dos fornecedores privados fosse feita de forma honesta e transparente. Até porque a simples realização de concorrência não exclui o risco de corrupção.

DINHEIRO ? Como o sr. vê o programa de investimentos, com as usinas térmicas e a possível retomada de projetos nucleares?
MENDES ?
Os melhores aproveitamentos hidrelétricos no Brasil já foram feitos, mas ainda é possível encontrar muitos projetos hídricos viáveis. Nesse campo, o País teve um planejamento primoroso e construiu a matriz energética mais barata do mundo. Temos uma base técnica de primeira linha na engenharia, mas o problema é que, de uns tempos para cá, a qualidade da administração pública caiu muito. Agora mesmo, uma autoridade vem e sugere que as águas do lago de Furnas sejam desviadas para permitir o transporte da soja nas hidrovias. Como é que pode? Um sujeito desses, que dizem ser competente, deveria estar interditado por sugerir uma bobagem desse tamanho. Voltando ao programa de investimentos, é natural que agora haja uma diversificação maior da matriz energética, com mais geração térmica convencional e termonuclear. A Alemanha é um país que voltou atrás no seu programa nuclear, mas só fez isso porque é governada por uma coalizão com forte presença dos ambientalistas. Mas hoje as usinas nucleares são muito mais seguras. Trata-se de uma energia até mais limpa do que a térmica e com custos ambientais menores do que os da energia hidrelétrica. O risco é o acidente, mas isso é algo cada vez mais remoto. No caso da energia térmica, isso dá uma estabilidade maior à matriz energética, pois a matéria-prima, que é o gás, está disponível. Com as térmicas, é possível manter os reservatórios em um nível de otimização maior. O sistema energético brasileiro terá de ser misto.

DINHEIRO ? Todo o programa de racionamento vem sendo questionado na Justiça. Qual a sua avaliação a respeito?
MENDES ?
A nova postura dos juízes dos tribunais superiores e dos procuradores é outro aspecto positivo da crise. Em democracias incipientes, os governos vêem as leis como um incômodo. No Brasil, ainda não se vive sob o império da lei, mas sob a lei do imperador. Mas já começo a perceber uma reação do Judiciário. Acho que o apagão legal é muito mais grave do que o apagão de energia.

DINHEIRO ? Na área de energia, o sr. se diz credor da Chesf, que fornece a maior parte da energia do Nordeste, em um contencioso bilionário. O sr. espera receber do Estado?
MENDES ?
Não sou eu que me digo credor. Trata-se de um crédito transitado em julgado, já em última instância, e de uma primeira perícia que, há seis anos, apurou um valor de R$ 1,5 bilhão. Com os juros da economia brasileira, trata-se de um valor hoje muito maior e a empresa até fez menção a essa questão no seu último balanço. Trata-se de uma obra, a da usina de Itaparica, executada nos anos 80 e que evitou um racionamento gravíssimo no Nordeste. Como a empresa atrasou os pagamentos porque o governo decidiu destinar seus recursos para uma obra que não era prioritária, a de Tucuruí, na Região Norte, criou-se todo esse passivo. Espero receber, em um prazo até relativamente curto, porque foram contratos feitos entre uma empresa privada e uma empresa de economia mista, ambas sujeitas às mesmas leis. Em tese, um credor tem até o direito de arresto dos bens da empresa devedora.

DINHEIRO ? A Mendes Júnior já foi uma das maiores empresas do País, mas, em razão de todos esses problemas jurídicos, chegou a enfrentar diversos pedidos de falência. Como está a empresa hoje?
MENDES ?
O contencioso jurídico envolve basicamente o Banco
do Brasil e a Chesf. No primeiro caso, os processos têm caminhado de forma satisfatória, na direção de um encontro de contas entre
as partes. No segundo, já estamos na fase de uma segunda perícia, que será definitiva, para apurar os valores devidos pela Chesf. Portanto, o governo nos causou uma enorme perda patrimonial, vendemos diversos ativos, como a própria Siderúrgica Mendes
Júnior, mas estamos de pé novamente, com uma boa imagem
no Brasil e no exterior. Somos uma empresa extremamente competitiva e estamos prontos para trabalhar para quem quiser preço justo e qualidade de ponta.