15/10/2025 - 10:47
Mais de 20 crianças morreram na Índia após tomar xarope para tosse contaminado. Caso revela lacunas de segurança no país que ficou conhecido como a “farmácia do mundo”.A morte de mais de 20 crianças no estado de Madhya Pradesh, no centro da Índia, em setembro, abalou profundamente o país, que se considera uma potência farmacêutica. Todas as vítimas tinham menos de seis anos e haviam tomado um xarope para tosse comum.
Autoridades locais analisaram a água do local e levantaram outras hipóteses para a tragédia, logo descartadas quando exames indicaram que os rins das crianças haviam deixado de funcionar. Semanas depois, um laboratório confirmou a suspeita: o xarope estava contaminado, com níveis fatais de dietilenoglicol – um solvente industrial e anticongelante químico que pode provocar insuficiência renal aguda.
A mesma substância tóxica foi associada a tragédias anteriores, também relacionadas ao xarope para tosse fabricado na Índia, incluindo a morte de 18 crianças no Uzbequistão em 2023, cerca de 70 crianças em Gâmbia em 2022 e outras 12 na região do Jammu, território administrado pela Índia, em 2019 e 2020.
Alertas e empresário preso
A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta na terça-feira (14/10) sobre a contaminação de lotes específicos de três xaropes usados para aliviar sintomas de resfriado e tosse na Índia: Coldrif, Respifresh TR e ReLife.
O uso dos medicamentos contaminados pode causar danos graves ou morte, especialmente em crianças, com efeitos como dor abdominal, vômitos, diarreia, dificuldade para urinar, dor de cabeça, confusão mental e lesão renal aguda, afirmou a OMS.
Com a mais recente tragédia, a Organização Central de Controle de Medicamentos da Índia (CDSCO), autoridades estaduais e outros órgãos reguladores proibiram a venda do xarope em vários estados, emitiram alertas para a população e iniciaram uma investigação sobre o processo de fabricação.
“Iniciamos inspeções baseadas em risco em 19 unidades de fabricação de medicamentos em seis estados para identificar falhas de qualidade”, informou a CDSCO, em comunicado. O proprietário da Sresan Pharmaceuticals, empresa indiana responsável pelo xarope para tosse contaminado em Madhya Pradesh, foi preso, e a empresa fechada.
No entanto, especialistas alertam que a indústria farmacêutica da Índia continua a operar sob um emaranhado de regulamentações estaduais desiguais, corrupção e coordenação interestadual deficiente.
Cada estado, uma regra
A Índia é o maior fornecedor mundial de vacinas, responsável por mais da metade da demanda global. Também é líder mundial na produção de medicamentos genéricos, ao abastecer 20% do mercado – embora algumas estimativas apontem para até 40%.
A indústria farmacêutica indiana, no entanto, é descentralizada. Cada estado supervisiona sua própria produção e adota seus próprios protocolos de segurança. Algumas empresas exploram as lacunas desse sistema para evitar serem responsabilizadas. Soumya Swaminathan, ex-cientista-chefe da OMS, alertou que a estrutura regulatória de medicamentos da Índia precisa urgentemente de uma reforma abrangente.
“A qualidade da supervisão varia significativamente de estado para estado, e a corrupção continua sendo uma preocupação séria”, disse. “Além disso, a fraca coordenação entre os reguladores estaduais continua prejudicando a aplicação eficaz da segurança em todo o país”, acrescentou.
Dinesh Thakur, que expôs fraudes generalizadas na Ranbaxy, uma das maiores empresas farmacêuticas da Índia, compartilha preocupações semelhantes. “Há evidências mais do que suficientes de que as compras públicas em nível estadual estão repletas de corrupção. De que outra forma se pode explicar por que Madhya Pradesh comprou medicamentos de empresas incluídas na lista negra do governo?”, questionou.
O ativista da saúde pública aponta para um relatório recente do Controlador e Auditor Geral da Índia que mostrou que a administração de Madhya Pradesh continuou comprando e distribuindo medicamentos proibidos para uso humano pelo governo, colocando em risco a saúde pública. “As compras públicas em nível estadual são basicamente um esquema de patrocínio para fabricantes que financiam campanhas políticas”, acrescentou.
Protocolos de segurança
Revistas médicas e estudos estimam que entre 20% e 25% dos medicamentos disponíveis no mercado estão abaixo dos padrões exigidos, principalmente em países em desenvolvimento. Medicamentos falsificados são uma indústria paralela em expansão na Índia, representando riscos graves à saúde pública e desestabilizando o setor farmacêutico.
Nakul Pasricha, CEO da PharmaSecure (empresa de tecnologia voltada para segurança de medicamentos), disse que o país precisa de testes e inspeções regulares e contínuas, além de medidas mais rigorosas contra os infratores.
“As penalidades atuais são um impedimento suficiente? Isso deve ser examinado. Precisamos conscientizar mais os pacientes e consumidores para que fiquem atentos. Acredito que precisamos aproveitar a tecnologia e as soluções para ter melhor rastreabilidade e divulgação de informações”, avaliou Pasricha.
“Agora, os fabricantes estão sendo solicitados a incorporar e divulgar informações sobre excipientes nos rótulos dos medicamentos. Por que não podemos ter visibilidade completa aproveitando os códigos QR já aplicados aos rótulos?”, disse Pasricha, que trabalha com fabricantes farmacêuticos para rastrear e verificar suas cadeias de suprimentos e garantir a autenticidade de seus medicamentos.
No caso da empresa de Pasricha, as embalagens dos medicamentos têm códigos que permitem aos consumidores confirmar a sua autenticidade.
A “farmácia do mundo” passou a perna nos reguladores?
O mercado farmacêutico da Índia vale cerca de 50 bilhões de dólares (R$ 274 bilhões), de acordo com estimativas da indústria e do governo. O país mais populoso do mundo está entre os três maiores fabricantes de produtos farmacêuticos, em volume produzido.
“A Índia tem expertise para produzir medicamentos em nível mundial, mas a escala da indústria pode ter superado seus controles de qualidade. Sem testes consistentes e independentes, o sistema depende da confiança em vez da verificação, o que ajuda a explicar as recentes mortes relacionadas ao xarope para tosse”, disse Rajeev Jayadevan, médico e comunicador da área da saúde.
Jayadevan explica que a Índia é frequentemente chamada de “farmácia do mundo” devido à sua vasta indústria de medicamentos genéricos, que fornece remédios acessíveis a muitos países. O título vem com uma enorme responsabilidade. “Embora muitas empresas farmacêuticas indianas sigam boas práticas de fabricação e exportem para os mercados mais rigorosamente regulamentados, várias empresas menores podem estar operando com uma supervisão regulatória desigual.”