23/05/2022 - 21:04
Uma série de artigos do jornal The New York Times, publicados durante o fim de semana, traz à tona a trágica história da independência do Haiti e a astronômica dívida que o país teve que pagar à França no século XIX, um tema pouco explorado pela classe política haitiana.
Depois de vários meses de análises de arquivos, o veículo americano estimou que os pagamentos efetuados desde 1825 pela primeira república negra independente da história para indenizar os antigos colonos escravagistas “custaram ao desenvolvimento econômico do Haiti entre 21 e 115 bilhões de dólares de prejuízo em dois séculos, ou entre uma e oito vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2020”.
Embora a publicação tenha sido amplamente compartilhada e comentada nas redes sociais, prevalece o completo silêncio tanto das autoridades de Porto Príncipe como de seus opositores.
“Os políticos haitianos têm a infeliz tendência de funcionar apenas no presente”, declarou nesta segunda-feira (23) à AFP o historiador haitiano Pierre Buteau. “Os políticos só estão interessados na luta pelo poder”, lamentou.
– Destituição do presidente Aristide –
A relutância dos líderes haitianos em abraçar esta causa também pode ser explicada pelo intervencionismo ocidental no passado recente do país caribenho.
Em 2003, o então presidente Jean-Bertrand Aristide havia tornado a questão da dívida de independência o seu cavalo de batalha, quantificando, ao pé da letra, a quantia recebida pela França em mais de 21 bilhões de dólares.
Diante de uma insurreição armada e de uma revolta popular, que denunciava violações dos direitos humanos, Aristide foi derrubado do poder em fevereiro de 2004, sob forte pressão de EUA, França e Canadá.
Entrevistado quase duas décadas depois pelo New York Times, Thierry Burkard, o embaixador da França naquele período, admitiu que havia “certa” conexão entre a destituição de Aristide e suas demandas de restituição da dívida.
Ao declarar sua independência em 1° de janeiro de 1804, o Haiti estava alijado do concerto das nações de um mundo então dominado por poderes escravagistas.
“A forma na qual, durante um século e meio, o Haiti teve que pagar à França por seu desejo de ser livre, […] fez com que toda a integração internacional do Haiti fosse comprometida”, analisou o economista francês Thomas Piketty no lançamento, em 2019, de seu livro “Capital e Ideologia”, no qual analisa amplamente o problema da dívida de independência do Haiti.
– Torre Eiffel financiada com dinheiro haitiano –
Os pagamentos exigidos pela França privaram a economia haitiana de recursos vitais para o seu desenvolvimento tanto como permitiram a prosperidade de sua antiga metrópole.
O New York Times mostrou como, no fim do século XIX, o banco CIC (Crédit Industriel et Commercial) repatriou para a França, através de empréstimos tóxicos que supostamente ajudariam o governo do Haiti a amortizar sua dívida, as receitas do jovem banco nacional haitiano.
Esse capital permitiu, posteriormente, que o banco parisiense financiasse, em particular, a construção da famosa Torre Eiffel na capital francesa.
A atual matriz do CIC reagiu nesta segunda-feira às revelações do veículo de comunicação americano.
“Já que é importante lançar luz sobre todos os componentes da história da colonização, inclusive na década de 1870, o banco financiará trabalhos acadêmicos independentes para lançar luz sobre esse passado”, anunciou o Crédit Mutuel em um comunicado de imprensa.
Através de seu trabalho de investigação, o New York Times também traz à tona o saque das reservas de ouro haitianas por parte dos soldados americanos no início do século XX.
“17 de dezembro de 1914. Oito fuzileiros navais americanos entram no edifício do Banco Nacional do Haiti, na primeira hora da tarde, e saem com seus braços carregados com caixas de madeira cheias de ouro. O valor da carga: 500.000 dólares”, segundo o jornal.
Esses fatos precederam a invasão do Haiti pelos militares americanos, que ocuparam o país caribenho entre julho de 1915 e 1934.
Os Estados Unidos assumiram o controle direto das finanças haitianas até uma década depois da retirada de suas tropas.