25/08/2024 - 7:00
Por Paula Cristina
Na física quântica a teoria do caos define que um ínfimo movimento, como o bater de asas de uma borboleta, pode ter a capacidade de moldar eventos futuros de modo imprevisível, criando um ambiente impossível de ser previsto. Na política não seria diferente. Em abril de 2022, muito antes da chegada de Lula à Presidência, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou uma discussão sobre a legalidade de repasses do governo federal para parlamentares feitos sem lastro ou indicação de destino. No mês seguinte, deputados e senadores colocaram para apreciação das Casas cinco projetos para limitar os poderes da Suprema Corte. À época, nenhum movimento andou, ainda que a polarização política pressionasse os dois lados. Até agora.
Em 2024 o assunto voltou a render, mas em condições diferentes. Se durante a gestão de Jair Bolsonaro o conflito com o Judiciário era explícito, agora, sob o governo Lula, a tensão foi velada, até que a rusga ganhasse contornos de guerra fria. O impasse era o seguinte: o STF poderia tornar inconstitucional a forma como o Orçamento público é distribuído através de emendas. O Congresso afirmava que, sob a ótica da Constituição, não cabia ao Judiciário legislar. O Supremo, então, dobrou a aposta, e disse que, além de rever as emendas obscuras, os congressistas deveriam encontrar formas de compensar o aumento de gastos impetrado pela desoneração na folha de pagamento. O Executivo, pendendo para o Judiciário, tentou mediar, e o resultado da queda de braço foi uma despesa de R$ 26 bilhões para o governo federal.
Para definir como lidar com as diferenças, o presidente do Supremo, Luis Roberto Barroso, convocou um almoço em sua residência com lideranças do Congresso e representantes do governo. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco (que havia encabeçado a pressão contra o STF), não pegaram leve, mas o encontro surtiu algum efeito de panos quentes. Dois assessores presentes no encontro, um pelo lado do governo e outro pelo lado do Congresso, disseram à reportagem que houve troca de farpas e, até metade do encontro, pouco havia avançado a discussão. Entre os incômodos do Congresso, o principal era a impressão que os parlamentares tinham de que o Executivo e o Judiciário estavam firmando uma dobradinha para vencer o Legislativo. “Não é um jogo de futebol, não tem essa”, teria dito um representante do Congresso.
No decorrer do encontro, alguns momentos foram ainda mais tensos, em especial quando houve a sugestão por parte de um dos presentes de terminar com a obrigatoriedade das emendas. Neste momento, Pacheco teria levantado a voz, e dito que a forma como o Orçamento é desenhado é constitucional e a fatia do Legislativo é parte do jogo republicano. Depois disso, Barroso teria pedido calma e explicações mais claras sobre como funciona o rito da emenda, e seus efeitos práticos na melhora das cidades e estados.
“Houve um entendimento da importância das emendas, ainda que elas precisem de ajustes.”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado Federal
IMPACTOS
Depois de mais algumas horas de discussão, o encontro terminou.
• No discurso do Executivo e do Judiciário, o encontro foi frutífero.
• Entre os deputados e senadores, no entanto, a notícia que correu é que não havia um acordo sobre as emendas e as desonerações.
• Se sentindo pressionados, os deputados da oposição não demoraram a agir.
• No Senado, avançou o texto que mantinha a desoneração da folha de pagamento para 17 setores, no que ficou caracterizado como uma derrota para o governo.
Pela decisão do Parlamento, haverá uma prorrogação do benefício fiscal da folha de pagamento sem a elevação da alíquota do JCP (Juros sobre Capital Próprio) de 15% para 20%, como queria o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O texto também garante o benefício para pagamentos feitos por e para municípios. Ainda assim, o projeto estima uma reoneração gradual da folha dos setores e das prefeituras a partir de 2025 – mas com um gatilho para revisão do fim, caso seja necessário. Se tudo correr como os parlamentares esperam (e desconsiderando a teoria do caos), o fim da desoneração ficaria para 2028. Dessa forma, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner, estima que o impacto, só em 2024, seja de R$ 26 bilhões, volume de recursos que o governo ainda não tem como cobrir para manter o Arcabouço Fiscal.
Apesar da ressalva, Jaques Wagner afirmou que o texto representa o “consenso capaz de encerrar as divergências entre os Poderes Executivo e Legislativo acerca da desoneração da folha de pagamento”. O texto agora segue para a apreciação na Câmara.
Concomitantemente, o Senado avançou com a derrubada de parte do decreto de Lula sobre a limitação do acesso a armas, além de reduzir o tempo de punição de inelegibilidade. Outras pautas de costumes, e até mesmo a Reforma Administrativa, também devem ser trazidas para discussão o quanto antes, o que pode ser encarado como uma “cutucada” no Executivo. Enquanto tais assuntos ganham corpo, o fim da regulamentação da Reforma Tributária segue sem data definida, com Pacheco, inclusive, dando sinais de que seria inviável levantar tal discussão antes das eleições municipais, o que desagrada o governo, que esperava começar a transição tributária já em 2025.
EMENDAS
Com relação às emendas, a solução passa por respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. Executivo e Legislativo têm um prazo de dez dias para definir os novos parâmetros para a execução dos repasses. Sobre o assunto, o ministro Flávio Dino, um dos que mais criticaram e foi o responsável pelo assunto ter voltado ao plenário do STF, afirmou ter segurança de que os outros Poderes encontrarão uma solução no prazo. “O acordo, no entanto, não finaliza os processos, tanto que as liminares estão valendo. O acordo sinaliza o caminho para o qual nós vamos chegar ao fim dos processos.”
Senado mantém desoneração da folha em 2024 e benefício só terminará de vez em 2028. Decisão foi considerada derrota do governo
As chamadas “emendas Pix”, que permitiam a transferência direta de recursos públicos sem destinação específica para algum projeto ou programa, continuam, desde que observadas “a necessidade de identificação antecipada do objeto, a concessão de prioridade para obras inacabadas e a prestação de contas perante o TCU”. Elas são impositivas, ou seja, de pagamento obrigatório pelo governo. No caso de emendas individuais comuns, os Poderes também decidiram pela manutenção e pela impositividade, mas com novas regras de transparência e rastreabilidade.
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Já as emendas de bancada, também impositivas, devem ser “destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição da bancada, vedada a individualização”. Por fim, as emendas de comissão devem ser “destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo, conforme procedimentos a serem estabelecidos em até dez dias”. Outro ponto do acordo é que as emendas não podem crescer de um ano para o outro em proporção superior à elevação nas despesas discricionárias do Executivo. Em 2024, o governo deverá liberar R$ 49 bilhões para estes fins, um valor alto, muitas vezes sem destino claro, e que exemplifica muito bem a boa, e confusa, teoria do caos.