Caso do livro escolar é revoltante mas, infelizmente, não é isolado. Em 2025, ainda existem muitos europeus para quem o Brasil se resume a miséria, samba, bunda, futebol e selva.”Olá, meu nome é Marco. Eu vivo no Rio de Janeiro. Eu não vou à escola. Pela manhã, procuro restos de comida na lata de lixo. Meu sonho é ser jogador de futebol profissional”. É inacreditável, mas esse perfil está num livro didático da Alemanha dirigido a crianças do quarto ano do ensino fundamental.

O caso é muito sério, ainda mais pelo fato de esse exemplo estar num livro usado por escolas públicas, que deveriam estar educando as crianças, e não repetindo e corroborando clichês.

O fato foi denunciado por pais brasileiros que moram em Berlim e causou uma justa revolta. Como resultado, a Embaixada do Brasil na Alemanha também reclamou e a editora da obra, a Mildenberger, disse que suspendeu as vendas dos livros e que iria fazer uma “versão atualizada que seria discutida com a comunidade brasileira”. A versão online da obra já foi alterada. Agora, Marco adora esportes e continua sonhando em ser jogador de futebol. Ou seja, melhorou, mas continua sendo um clichê.

“Ah, mas todo menino brasileiro ama esportes e sonha em ser jogador de futebol”, dirão alguns. Não, não são todos. O que existe é um estereótipo antigo de que o Brasil é o país do “futebol, do samba e da bunda”, quando, na verdade, o Brasil é enorme e diverso.

É fato também que, infelizmente, existem no Brasil crianças que não vão à escola e catam comida no lixo. Mas usar esse exemplo para retratar as crianças do país é um estereótipo preconceituoso, dirigido a países em desenvolvimento como o Brasil.

Por exemplo, você acha que um menino nascido nos Estados Unidos seria retratado como alguém que não vai à escola e se alimenta do lixo? Não, apesar de isso também acontecer lá. E, claro, na Alemanha também existem crianças que vivem em situações de vulnerabilidade.

Rotina de estereótipos

O caso do livro escolar é revoltante, mas, infelizmente, não é isolado. Brasileiros que moram na Alemanha, e também em outros países mundo afora, continuam lidando com clichês rotineiramente. É absurdo, mas em 2025 ainda existe muito europeu que acha que o Brasil se resume a miséria, samba, bunda, futebol e selva.

Sabe aquela ideia antiga de que toda mulher brasileira é sexy e sabe sambar e que os homens sabem todos jogar futebol? Ela ainda existe.

Nada contra sambistas, jogadores de futebol e ser quente na cama (muito pelo contrário). Tudo contra o fato de o Brasil, para muitos, ainda se resumir a clichês que datam dos anos 60. “Quando entro num táxi, nem falo mais que sou brasileira”, diz uma amiga que mora há muitos anos aqui e simplesmente se cansou de ouvir piadinhas e cantadas pelo simples fato de ser brasileira.

“Tem homem alemão que acha que pode passar a mão na gente quando falamos que somos brasileiras”, me conta uma moça de 20 e poucos anos.

No caso das mulheres, é ainda mais difícil, porque temos essa imagem da hipersexualização, e por isso somos extremamente objetificadas. Nas lojas, ainda é possível encontrar calcinhas tangas chamadas de “modelo brasileiro”, e claro, o Brasil é famoso também pela depilação e a cirurgia Brazilian booty lift (um preenchimento dos glúteos conhecido no mundo todo por esse nome “lift de bunda brasileira”).

Mas os clichês e estereótipos vão além dos sexuais.

Energia brasileira

“Quando a minha irmã visitou a Alemanha pela primeira vez sozinha, nos anos 90, já perguntaram para ela se ela ia para a escola de cipó”, me conta uma amiga. É chocante que ainda exista gente que pensa que o Brasil é uma selva, na “civilizada” e “educada” Europa.

Assim como é assustador que ainda haja europeu achando que no Brasil falamos espanhol. “Você pode ajudar minha filha na lição de espanhol?” Eu já ouvi isso de uma mulher teoricamente muito culta e sofisticada. Como pode?

Outro clichê comum (e que acho que atinge os latinos em geral) é o temperamento “quente, passional”. Quem me conhece pessoalmente sabe que eu sou uma pessoa inofensiva, que as crianças adoram e que não oferece perigo (risos) mas juro que uma alemã já se referiu a mim da seguinte maneira: “Ela tem uma energia brasileira muito forte e eu me sinto desprotegida diante dela”. Eu não estou brincando. Isso aconteceu comigo.

O que é “energia brasileira” é algo que eu ainda não entendi e nem pretendo entender. Já o preconceito, entendi na hora. A “pobre mulher branca europeia” se sentiu “desprotegida” diante da “selvagem”. Sem querer, ela reproduziu outro clichê.

Não estou falando que todos os europeus têm essa ignorância e preconceitos em relação ao Brasil e brasileiros, de forma alguma. O que acho importante é a gente reconhecer que esse comportamento ainda existe. E denuncie para que um dia, quem sabe, brasileiros sejam tratados apenas como… pessoas que nasceram num país diverso chamado Brasil.

_____________________________

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente da DW.