A Ford inventou a indústria automobilística e agora está se reinventando. Acaba de comprar um serviço de vans online chamado Chariot, que opera na região de San Francisco, na Califórnia, e define suas rotas a partir das necessidades dos usuários. Também tornou-se sócia da Motivate, empresa que compartilha bicicletas em onze cidades dos Estados Unidos e em Melbourne, na Austrália.

Há três anos, escutei o então diretor de sustentabilidade da companhia, John Viera, anunciar no Sustainable Brands San Diego que a Ford migraria seu posicionamento estratégico de fabricante de carros e caminhões para uma empresa de mobilidade de pessoas e bens. As primeiras evidências concretas dessa mudança começam a aparecer.

Na semana passada, a Ford anunciou ainda que está criando um time que irá trabalhar com diversas cidades ao redor do mundo, propondo soluções para o trânsito. Em março, a companhia já havia criado a Ford Smart Mobility, subsidiária localizada no Vale do Silício, dedicada a  investir em startups promissoras que explorem novas soluções de transporte.

O CEO Mark Fields reconhece o óbvio: cidades congestionadas afetam o principal negócio da companhia e, portanto, em vez de simplesmente tentar vender mais carros, o lógico é tornar-se parte da solução e buscar alternativas para o trânsito nas metrópoles.

É importante enfatizar que essa não deve ser encarada como uma decisão compensativa ou paliativa da Ford ou de qualquer dos demais fabricantes de automóveis. Trata-se de uma mudança estratégica para a sobrevivência do negócio. Do contrário, a sociedade se encarregará de estabelecer limites, seja por meio de decisões de consumo, seja por maior regulação.

Esse é o motivo pelo qual relativizo as notícias recorrentes de encolhimento da indústria automobilística no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. No curto prazo, é verdade, há perdas importantes na atividade produtiva e na geração de emprego.

Um olhar mais ampliado, porém, nos permite entender que essa é uma conta parcial e incompleta, pois não considera todos os impactos ambientais e sociais da produção e do uso dos automóveis: a poluição ambiental, a perda de dinheiro em congestionamentos, a demanda por mais infraestrutura viária, os custos da saúde e da violência no trânsito etc. Na matemática vigente, os ganhos ficam do lado privado e as perdas pertencem ao público, em última análise, à sociedade.

Claro, sempre precisaremos de transporte, mas de um transporte inteligente, que atenda às necessidades das pessoas e das cidades, que contribua para a qualidade de vida, em vez de prejudicá-la.

Essa é uma dimensão de política pública na qual ainda estamos engatinhando no Brasil. Um exemplo gritante recente foram as constantes medidas do Governo Federal de redução de IPI da indústria automobilística para promover o aquecimento da economia, colocando milhões de carros nas ruas das grandes cidades brasileiras e deixando prefeitos, muitas vezes aliados, descascarem o abacaxi da mobilidade urbana.

Vamos acompanhar esse movimento da Ford, torcendo para que ele tenha consistência e se aprofunde. Também é bom aguardar como essa estratégia vai se desdobrar por aqui. Afinal, a indústria automobilística também é pródiga em ter maravilhosas estratégias na matriz e operações predatórias nos países distantes – entre eles, o Brasil. 

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