12/10/2015 - 0:00
É incrível como o mercado de crossovers no Brasil guarda algumas semelhanças com o filme Casablanca. Quem conhece a história do clássico de Hollywood filmado por Michael Curtiz vai entender o que estou dizendo. Quem não conhece, bem, está simplesmente 73 anos atrasado no que diz respeito ao cinema. Vamos, portanto, aos principais personagens. De Casablanca: Rick Blayne, Ilsa Lund, Victor Laszlo, Capitão Renault e Ugarte. Dos crossovers: Ford EcoSport, Honda HR-V, Jeep Renegade, Renault Duster e carros “aventureiros” (qualquer um de qualquer marca).
Em Casablanca, Rick dominava a cena e era o dono do mercado. Todos os negócios aconteciam em seu bar. Até que apareceu o casal Ilsa e Victor para roubar a cena, chamar a atenção de todo mundo e acabar com a boa vida de Rick. O Capitão Renault era um francês que aceitava ter dupla nacionalidade quando convinha. Ou tripla. Se os ventos soprassem da Alemanha, era alemão. Se soprassem de Vichy, era francês. E vivia em Casablanca sem reclamar, como um bom marroquino. Ugarte, por sua vez, era o sujeito inescrupuloso, capaz de mentir para conseguir salvo-condutos. Sua grande aspiração era impressionar o poderoso Rick.
Agora vamos às semelhanças. No Brasil, o Ford EcoSport (Rick) dominava a cena e era dono absoluto do mercado de crossovers. Durante mais de uma década, simplesmente não teve competidores. Só no ano passado emplacou 54.263 unidades. Para fazer sucesso, bastou mudar um pouco sua personalidade (deixou de ser Fiesta e passou a ser EcoSport, assim como Rick deixou de ser um romântico em Paris para ser um boêmio insensível em Casablanca). Até que apareceu a dupla Honda HR-V e Jeep Renegade (Ilsa e Victor) para roubar a cena, chamar a atenção dos consumidores e acabar com a boa vida do EcoSport. Assim como Ilsa Lund, o HR-V é bonito, charmoso, irresistível. E embora o EcoSport possa ter dito “de todos os mercados do mundo, o HR-V tinha que entrar logo no meu”, havia uma química entre eles. De alguma forma, segundo o marketing da Ford, o HR-V não roubava clientes do EcoSport – eles poderiam muito bem compartilhar uma convivência no mercado, pois o HR-V é mais bonito e urbano, enquanto o EcoSport é mais duro e selvagem. Em Casablanca, como sabemos, Rick e Ilsa poderiam viver felizes para sempre.
Mas o problema é que o HR-V veio junto com o Renegade, da mesma forma que Ilsa apareceu acompanhada de Victor. Ora, o Renegade carrega o DNA da aventura do sobrenome Jeep, é capaz de se dar bem numa rua asfaltada ou na areia do deserto. Impossível não lembrar de Victor, que fez o sobrenome Laszlo ficar famoso em toda a Europa devido à sua resistência aos nazistas. Victor era acima de tudo um bravo: não havia perigo que o intimidasse. E esse é o problema do EcoSport (Rick): o HR-V (Ilsa) e o Renegade (Victor) chegaram juntos e não vão se separar tão cedo.
Quanto ao Capitão Renault, nada mais parecido com o Renault Duster. Para começo de conversa, Renault e Rick viviam harmoniosamente em Casablanca, cada um respeitava o espaço do outro. Afinal de contas, Renault nunca teve o charme de Rick. Nem o Duster alguma vez ameaçou o status do EcoSport. Foi assim que o Duster e o EcoSport tiveram longos anos de convivência pacífica. Se havia mulheres para ambos em Casablanca, havia consumidores para os dois carros no mercado brasileiro. Outra coincidência: o Duster na verdade é romeno, pertencente à linhagem da Dacia (subsidiária da Renault) e só no Brasil adquiriu nacionalidade francesa. E o Capitão Renault, com eu já disse, não pensou duas vezes quando teve de obedecer às ordens da Alemanha nazista.
Finalmente temos Ugarte. No papel dele podemos colocar qualquer automóvel tipo “aventureiro”. Carros desse tipo têm apenas uma roupagem de SUV ou crossover, mas na verdade não passam de modelos enfeitados. Ugarte queria impressionar Rick e respeitava o Capitão Renault, assim como as versões “aventureiras” (VW CrossFox, Fiat Palio Adventure, Hyundai HB20X, Citroën Aircross e várias outras) queriam ser vistas pelo público como reais competidoras do EcoSport, mas respeitavam muito a robustez do Duster. Ugarte, coitado, teve vida curta tão logo Victor e Ilsa chegaram a Casablanca. Nada diferente do que aconteceu com o apelo provocado pelos carros “aventureiros”, sem qualquer modificação técnica, diante da invasão dos charmosos e eficientes Renegade e HR-V.
No final de Casablanca, Rick armou uma trama que fez Ilsa e Victor pegarem um avião para Lisboa e iniciou uma grande amizade com o Capitão Renault. Tudo sob a serena e discretíssima testemunha de um Buick Phaeton na pista do aeroporto. Não foi um final feliz – mas talvez esse tenha sido o segredo para o filme se tornar um cult no mundo inteiro. No Brasil invadido pelos novos crossovers, tudo que o EcoSport gostaria era que o HR-V e o Renegade fossem fazer sucesso em Lisboa ou em qualquer outro mercado, para poder retomar sua tranquila convivência com o Duster. Mas a vida, dessa vez, não vai imitar a arte. Com vendas inferiores às do trio HR-V/Renegade/Duster nos últimos dois meses, resta ao EcoSport se reinventar. Pois não há o amigo Sam, não há um piano para tocar e não há música que possa trazer de volta os bons tempos.