A empresa que o Consórcio Nordeste acusa de ter desviado R$ 48,7 milhões que os nove estados nordestinos destinaram à compra de 300 respiradores chineses ofereceu o mesmo serviço a órgãos federais e a outros estados, afirmou hoje (1) o secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Telles Barbosa.

“A empresa investigada buscava [realizar] outras vendas […] Isto podia ter se tornado uma fraude ainda maior caso [a negociação] com órgãos federais e outros estados tivessem ido adiante”, disse Barbosa, ao conversar com jornalistas, por videoconferência, sobre a Operação Ragnarok, que a Polícia Civil da Bahia deflagrou esta manhã, com o apoio de órgãos de segurança do Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. Foram expedidos pela Justiça 15 mandados de busca e apreensão, cumpridos em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Araraquara

Entre os alvos da operação policial estão representantes da empresa HempCare Pharma. Sediada em Araraquara, a empresa foi contratada para intermediar a compra de respiradores fabricados na China e zelar para que os equipamentos chegassem ao Brasil – o contrato foi assinado após o governo da Bahia, que preside o Consórcio Nordeste, ter uma primeira remessa de respiradores apreendida nos Estados Unidos.

A HempCare deveria intermediar a compra do modelo de aparelhos chineses encomendado pelo Consórcio Nordeste para que os equipamentos fossem distribuídos a hospitais públicos dos nove estados da região (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) em meio à pandemia da covid-19.

Sucessivos atrasos na entrega dos produtos e a posterior recusa da empresa de devolver o dinheiro já recebido despertou suspeitas entre governadores e autoridades de saúde. Pressionada, a empresa passou a sugerir que o Consórcio do Nordeste aceitasse aparelhos fabricados aqui mesmo, no Brasil, no lugar do modelo chinês encomendado. 

Segundo o secretário de Segurança Pública da Bahia, surgiu então o mais forte indício de fraude: a suposta ligação da HempCare com o grupo Biogeoenergy, que tem, entre suas empresas, uma suposta fabricante de respiradores.

De acordo com Barbosa, ao cumprir os mandados de busca e apreensão na sede da HempCare, em Araraquara, os policiais não encontraram nenhum respirador. Nem chinês nem brasileiro. “Não encontramos nenhum respirador pronto. Ou seja, por mais que a empresa alegasse a intenção de entregar [modelos] nacionais e não os aparelhos chineses, eles também não existem. Trata-se de um indício fortíssimo de que estamos diante de uma fraude”, insistiu o secretário.

Distrito Federal

Mais cedo, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia já tinha divulgado uma nota mencionando que, além do contrato assinado com o Consórcio Nordeste, a HempCare “tentou negociar de forma fraudulenta” com entidades de outras unidades do país, como o Hospital Militar de Área (HMAB), do Exército, em Brasília, e hospitais de campanha montados no Distrito Federal.

Uma nota divulgada no site da Biogeoenergy demonstra que, recentemente, representantes da empresa se reuniram com responsáveis pelo HMAB, para o qual pretendiam vender ventiladores pulmonares. Consultado, o Exército informou não ter adquirido ou negociado qualquer equipamento das empresas alvos da operação Ragnarok. Até o momento, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal não se pronunciou a respeito das menções a hospitais de campanha.

Na mesma nota, a própria Biogeoenergy informa que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda não atestou seus respiradores. Segundo a empresa, os aparelhos estão “em fase final de homologação” para que possam começar a “ser produzidos em larga escala”. A empresa afirma esperar produzir mais de 4 mil respiradores pulmonares em duas fábricas: uma em Araraquara, no interior de São Paulo (um dos alvos da Operação Ragnarok), e outra em Camaçari, na região metropolitana de Salvador. A fábrica de Camaçari, entretanto, ainda não existe.

No dia 11 de maio – ou seja, pouco mais de um mês após assinar o contrato de compra dos respiradores chineses pela HempCare -, o governo da Bahia assinou um protocolo de intenções para apoiar a Bioenergy a se instalar em Camaçari, mas, segundo o secretário de Segurança Pública, as suspeitas de irregularidades vieram à tona antes que o projeto saísse do papel.

“Houve a intenção, por parte da empresa [Biogeoenergy], de montar um parque industrial de fabricação de respiradores [na Bahia], mas esta intenção não avançou. E então, ao longo das investigações, descobrimos que se tratava da mesma empresa [HempCare] que vinha atuando como se tivesse respiradores [nacionais] prontos para distribuir”, disse Barbosa.

Até o momento, a Biogeoenergy não respondeu às perguntas enviadas pela Agência Brasil sobre o suposto vínculo entre as empresas e a menção a ela na investigação. O governo da Bahia também ainda não se pronunciou sobre o protocolo de intenções assinado com a Biogeoenergy. A reportagem não conseguiu contato com os representantes legais da HempCare. Por questões legais, os nomes dos investigados detidos não foram confirmados.

Bloqueio 

Além de autorizar a prisão temporária de três suspeitos (dois no Distrito Federal e um no Rio de Janeiro) e a apreensão de documentos em diversos endereços ligados aos investigados, a Justiça Federal autorizou que mais de 150 contas bancárias vinculadas aos investigados fossem bloqueadas a fim de evitar a movimentação financeira.  

Na última sexta-feira (29), a Justiça já tinha determinado o bloqueio de R$ 48,7 milhões das contas da HempCare e de seus sócios. A medida visa a preservar recursos financeiros para, eventualmente, ressarcir os valores que os estados nordestinos pagaram pelos equipamentos não entregues.  

Também na sexta-feira, o governador da Bahia, Rui Costa, na condição de presidente do Consórcio do Nordeste, determinou a instauração de um processo administrativo para apurar as supostas irregularidades.

A HempCare Pharma é citada na portaria publicada no Diário Oficial do estado. O governo baiano sustenta que a empresa, contratada em 8 de abril, não cumpriu suas obrigações, o que configuraria ilícito administrativo. O processo deve ser concluído em 30 dias, podendo ser prorrogado pelo mesmo período.