19/03/2021 - 10:34
O pior de ter que cuidar de oito parentes com covid-19 ao mesmo tempo é decidir quem precisa mais de oxigênio, relata Laís de Souza Chaves, uma estudante de Manaus, capital da Amazônia brasileira.
A pandemia sufocou a cidade no começo do ano, esgotou as reservas de oxigênio nos hospitais e obrigou Laís, de 25 anos, e sua irmã, Laura, de 23, a improvisar uma unidade de terapia intensiva em casa, sem nenhuma formação médica.
A busca por cilindros de oxigênio se tornou a principal preocupação de centenas de famílias. E quando as duas irmãs conseguiam, tinham que compartilhá-lo entre os oito membros de sua família contagiados, entre os quais estava o pai das jovens.
Elas tiveram que aprender a manipular os reguladores, conectar tubos, medir a pressão do fluxo e dar preferência a quem mais precisava, sem informar aos demais para evitar piorar a situação.
“Tenho crise de pânico se alguém falar a palavra oxigênio. Eu me tremo toda”, contou Laís à AFP.
Em abril e maio do ano passado, e novamente em janeiro e fevereiro deste ano, Manaus se tornou a imagem do horror que os especialistas e muitos dirigentes políticos preveem quando pedem que a população respeite as medidas de confinamento, use máscaras e mantenha um distanciamento prudente dos demais.
Os cemitérios da cidade abriram valas comuns e caminhões frigoríficos foram mobilizados para armazenar os cadáveres à espera de ser enterrados.
A primeira onda foi tão descomunal que alguns especialistas pensaram que os 2,2 milhões de habitantes desta cidade encravada na floresta haviam atingido a imunidade de rebanho.
A segunda onda demonstrou de forma cruel que esta hipótese estava errada.
Os especialistas suspeitam agora que o brutal repique possa ter ocorrido devido a uma variante local do vírus, conhecida como P1, muito mais contagiosa do que a cepa original.
Em dezembro, a chamada “variante brasileira” foi detectada em 51% dos pacientes diagnosticados com covid em Manaus. Em janeiro, o percentual chegou a 91,4%, segundo pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No começo de fevereiro, chegou-se ainda a uma média semanal de 110 mortos por dia, quase o triplo do que a primeira onda.
A falta de leitos nas unidades de terapia intensiva deixou os pacientes abandonados à própria sorte.
“Não só o sistema de saúde superlotou, mas também aconteceu a falta de insumos e de oxigênio. Foi uma situação extremamente dramática…. Era um desespero”, disse a doutora Adele Benzaken, consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS), baseada em Manaus, sua cidade natal.
“Tu não tens ideia do que é familiares correndo para pegar um botijão de oxigênio. Era a briga nos locais que vendiam oxigênio”, lembra a profissional.
“Foi um clima de guerra. Eu nunca participei de nenhuma guerra, mas a sensação que eu tive foi daquela desorganização que existe num bombardeio, quando as pessoas não sabem que fazer, aquela correria, desespero para salvar vidas”, explica.
– Oxigênio a preço de ouro –
O pai de Laís e Laura, o técnico de enfermagem Márcio Moraes, de 43 anos, foi o primeiro da família a se contagiar.
Ele recebeu os primeiros tratamentos no hospital, mas foi rapidamente mandado para casa devido à falta de leitos.
Suas filhas pediram emprestados 6.000 reais e compraram um pequeno cilindro de oxigênio.
Logo outros parentes contraíram a doença e a casa virou um hospital.
Apesar das doações recebidas de amigos e vizinhos, as jovens estimam que tiveram que pagar 20.000 reais em despesas médicas, principalmente na compra de oxigênio.
No auge da crise, em janeiro, o preço do cilindro de 50 litros passou de 1.000 para até 6.500 reais, com o florescimento de um mercado negro.
Os carregamentos de cilindros e os depósitos nos hospitais precisaram de custódia policial.
Alguns fraudadores não hesitaram em pintar extintores de incêndio de verde para vendê-los como tanques de oxigênio.
– “Me tira daqui!” –
Outros manauaras descrevem experiências assustadoras em hospitais superlotados.
Josimauro da Silva, um mecânico de 57 anos, diabético, foi internado com sintomas graves de covid. Mas depois de passar a noite no corredor de um hospital com mais de 100 doentes esperando tratamento, ligou para a filha, Jéssica, e pediu a ela: “Me tira daqui o mais rápido possível, que vou acabar morrendo!”.
Ele contou à filha que não havia leitos, não havia oxigênio, nem médicos, nem enfermeiros para atender tantos pacientes ao mesmo tempo.
Desde então, Jéssica, de 22 anos, cuida dele em casa. A tarefa é extenuante e só lhe dá tempo para se alimentar e dormir.
“Virei uma zumbi”, conta.
Seu pai usou 20 cilindros de 50 litros nos primeiros 21 dias de tratamento. Conseguiu pagar por eles com doações de familiares e amigos.
“Quem tinha um pouco mais de acesso a dinheiro comprou garrafas de oxigênio, ou se pôde, alugou um avião e foi embora de Manaus”, relata Christovam Barcellos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.
“A cidade foi abandonada aos mais pobres”, acrescenta.
Até mesmo famílias com recursos econômicos foram obrigadas a improvisar hospitais caseiros.
A de Thiago Rocha, analista de tecnologias da informação, de 36 anos, decidiu instalar um na sala de estar, com tubo de oxigênio, ao comprovar que sua saúde piorava no hospital onde era tratado da covid-19.
“Fiquei muito assustado”, conta Rocha.
Sua família, de classe média alta, estima que estes cuidados tenham custado uns 10 mil reais, uma pequena fortuna para milhões de brasileiros.
– Manaus, “um laboratório” –
As autoridades de saúde pública de Manaus cometeram erros.
Os altos funcionários cederam a “pressões políticas” para acelerar a reabertura da economia, afirma Barcellos.
A cidade votou majoritariamente em 2018 no presidente Jair Bolsonaro, que constantemente ignorou os conselhos dos especialistas para conter a pandemia que já deixou mais de 280.000 mortos no Brasil, um balanço superado apenas pelos Estados Unidos.
Anos de cortes orçamentários e corrupção socavaram o sistema público de saúde.
Agora, a evolução da doença deve servir de advertência, afirma Benzaken.
A variante do vírus P1 se espalha rapidamente. Já foi detectada em uma dezena de países, entre eles Estados Unidos, Reino Unido e Japão.
Felizmente, as vacinas disponíveis se mostram eficazes para combatê-lo. Mas não é certo que avance mais rápido do que o vírus e outras variantes podem surgir.
“Existe um risco que essa variante que tem uma maior transmissibilidade, a P1, poder se espalhar”, diz a especialista. “Já foi identificada em vários países. Existe uma possibilidade dessa crise acontecer” em outros lugares.
“Manaus é como se fosse um laboratório do que vai acontecer”.