27/06/2022 - 17:00
Embora historiadores tratem como consenso que a causa da morte de Pedro I (1798-1834), primeiro imperador do Brasil, tenha sido tuberculose, é recorrente o boato de que o monarca, que há 200 anos proclamou a independência brasileira, tenha sido vítima de sífilis. Sua vida sexual notoriamente agitada, em que amantes ocasionais e paixões duradouras foram uma constante, justificaria essa lenda.
Mas a indícios concretos já conhecidos sobre sua verdadeira causa mortis soma-se um novo elemento, que permite concluir ainda que ele não só não morreu da infecção sexualmente transmissível como, a julgar pelos tratamentos a que foi submetido, nem sequer contraiu a doença.
LAUDOS INÉDITOS. Trata-se de uma série de laudos médicos, inéditos, com detalhes sobre os medicamentos ministrados ao nobre português nas últimas semanas de sua vida. Esse material, até então desconhecido, estava em Munique, na Alemanha, e foi descoberto por uma pesquisadora e escritora brasileira, Cláudia Thomé Witte, e repassado para o também pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, biógrafo de diversas personalidades da monarquia brasileira.
Rezzutti analisou os documentos com a ajuda do médico português Pedro de Freitas, doutor pela Universidade Maimonides, nos Estados Unidos, e historiador diletante. “Não há nenhum dado que aponte para sífilis, nem nunca vi nenhuma descrição das lesões típicas da sífilis, nos genitais, na pele etc”, comenta Freitas, em conversa com o Estadão.
Um artigo do médico, explicando minuciosamente a ficha médica de dom Pedro I, consta da nova edição da biografia dele escrita por Rezzutti – e a editora LeYa acaba de distribuir para as livrarias um boxe comemorativo com as reedições ampliadas de D. Pedro I O Homem Revelado por Cartas e Documentos Inéditos e D. Leopoldina – A Mulher que Arquitetou a Independência do Brasil.
Segundo Freitas, o boato da sífilis pode ter surgido do fato de que Pedro foi submetido a tratamento com mercúrio, que era algo utilizado na época para tentar combater a infecção sexual. Mas, conforme ele salienta, no caso do ex-imperador brasileiro a opção de medicamento foi feita “como antihemorrágico para evitar as hemoptises”, ou seja, a eliminação de sangue pela tosse.
“E o fato de só ser introduzido esse medicamento nesta fase avançada da doença prova que não o fazia antes (para controlar uma eventual sífilis). Aliás, com a vida sexual tão intensa e diversificada de dom Pedro, até estranho ele não ter contraído sífilis. Mas nada encontrei a esse respeito”, afirma o médico.
Esses documentos corroboram também o estudo arqueológico realizado pela pesquisadora Valdirene Ambiel na Universidade de São Paulo (USP), cujos resultados foram publicados com exclusividade pelo Estadão em fevereiro de 2013. Na ocasião, exames de tomografia realizados nos restos mortais do imperador apontaram para indícios de que ele teria sofrido tuberculose.
SANGRIAS. O médico Freitas identificou que Pedro foi submetido a pelo menos 14 tratamentos na reta final da vida. Procedimentos que incluíam sessões de sanguessugas e sangrias, ingestão de tônicos em vinho e medicamentos como aloés, ruibarbo e digitális. Para aliviar a dor, usava morfina e ópio. “Ele teve cuidado dos melhores médicos que havia disponíveis em Lisboa, nem todos ligados à Corte. Mas se pensarmos friamente, somente a elite teria acesso a esse tipo de profissional e esse profissional certamente tinha acesso à elite e à Corte.
Entre os seus médicos, um que se destaca é o seu pessoal, diz Rezzutti, com referência a João Fernandes Tavares (1795-1874). “Era um brasileiro, mulato, que conseguiu estudar graças a ajuda de um benfeitor e que acabou virando médico de dom Pedro. Seguiu com ele para a Europa após a abdicação”, acrescenta o pesquisador. Conforme atestam os documentos, nas últimas semanas de vida Pedro teve os cuidados de uma equipe de seis médicos.
“O tratamento a que dom Pedro foi submetido era o ‘gold standard’ da época”, analisa Freitas. “Como não havia tratamento específico para a doença, o tratamento era sintomático, isto é, para aliviar os sintomas ou sinais que iam ocorrendo. E esta era a melhor prática à época. Não me parece que fosse feito algo experimental, mas sim tratamentos correntemente usados.”
Os documentos médicos de Pedro I faziam parte do arquivo pessoal mantido pelo brasileiro Paulo Martins de Almeida (1807-1874), o Visconde de Almeida. “Ele entrou muito cedo a serviço de dom Pedro, ainda na Corte de d. João VI no Rio de Janeiro, e foi crescendo dentro da estrutura da corte, onde chegou ao posto de diplomata”, explica Rezzutti.
Paulo de Almeida tornou-se o “homem de total confiança” do imperador, conforme conta o pesquisador. Ele chegou a acompanhar a filha mais velha de Pedro I com Leopoldina, Maria II (1819-1853), em viagem para a Inglaterra em 1828 e também foi designado para levar a filha de dom Pedro com a Marquesa de Santos, sua mais famosa amante, para estudar na França, em 1829.
“Em 1831, quando o imperador abdicou, Almeida abriu mão do seu posto na diplomacia brasileira para acompanhá-lo como ajudante de campo”, conta Rezzutti. Ele seguiu trabalhando na Corte portuguesa mesmo após a morte de Pedro I. Serviu Maria II e também a viúva do monarca, Amélia (1812-1873).
“Quando dona Amélia morreu, o arquivo do imperador ficou a cargo de Almeida, que organizou e direcionou o que deveria ser feito com os documentos. O que era de dom Pedro até a data de 7 de abril de 1831, dia da abdicação, foi enviado ao Brasil, aos cuidados de dom Pedro II. O que era posterior, ele levou para a Baviera, onde morava”, explica Rezzutti. No momento, uma instituição portuguesa está adquirindo o arquivo, mas o processo corre sob sigilo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.