A primeira vitória legislativa da administração de Joe Biden aconteceu na semana passada com a aprovação do ‘American Rescue Plan Act’, o famoso pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão que chega na sequência do CARES Act aprovado no início da pandemia, de US$ 2,2 trilhões.

Apesar de relativamente equivalentes no tamanho do estímulo, as diferenças entre os dois pacotes são bem grandes. O CARES Act destinava cerca de 14% do valor total para pagamentos diretos a contribuintes que se enquadrassem em determinado intervalo de renda e 12% para o aumento do seguro-desemprego, além de cerca de 30% para o mecanismo batizado de ‘Payment Protection Program’, destinado a apoiar a folha de pagamentos de pequenas e médias empresas afetadas pela pandemia. Outros 23% foram destinados a grandes empresas e o restante, cerca de 20%, a estados e municípios. Passou no senado com 96 votos a favor e nenhum contra.

O ‘American Rescue Plan Act’ também destina recursos a pagamentos diretos a contribuintes, expande temporariamente o seguro-desemprego e repassa recursos a empresas em dificuldades, estados e municípios. O novo projeto, no entanto, vai além: aumenta por um período determinado o valor do programa de ‘food-stamps’ (em comparação livre, algo similar ao Bolsa Família no Brasil), amplia uma série de deduções permitidas na declaração de imposto de renda, destina fundos para escolas e universidades, subsidia aluguéis e custos relativos à energia elétrica, provê recursos para o desenvolvimento de novas vacinas – sim, você não leu errado: novas vacinas além das já desenvolvidas pelos laboratórios privados –, para os aeroportos e sistemas de transporte público, para o perdão de dívidas de fazendeiros com dificuldades, para cybersecurity – sim, de novo, você não leu errado –, além de implementar uma série de mudanças relativas ao Obamacare. Ah, também destina dinheiro para o ‘National Endowment for the Arts’, uma agência independente do governo federal que financia projetos artísticos, além de fornecer diversos outros subsídios que, para descrevê-los na totalidade, tomariam quase todo o espaço disponível aqui no blog. Quase emplacou, de quebra, o aumento do salário-mínimo federal para U$ 15 por hora, mas a oposição ferrenha dos republicanos e as regras de votação do Senado não permitiram. O plano de Biden teve a aprovação maciça da população americana, inclusive da parcela que vota em candidatos republicanos. Afinal, é dinheiro de volta ao bolso do contribuinte, e isso tem apelo popular aqui e em qualquer lugar do mundo. Mesmo assim, a lei passou no senado com 51 votos a favor e 50 contra – o voto de minerva foi da vice-presidente Kamala Harris, como estabelece a constituição americana.

No mercado financeiro a história é diferente. Desde a aprovação do pacote, a curva de juros americana – representada principalmente pelo diferencial de juros entre os papeis da dívida americana de dois e dez anos – começou a transmitir o sinal de que, quanto mais exagerado o estímulo, mais caro custa para financiá-lo. No início do ano, os papeis com vencimento em dois anos pagavam cerca de 0,11%, enquanto aqueles com vencimento em dez anos eram negociados a 0,91%. Ou seja, um diferencial de 80 pontos. Hoje, os títulos de dois anos pagam 0,15%, enquanto aqueles de dez anos negociam ao redor de 1,70%. Uma diferença de 155 pontos, quase o dobro do valor transacionado há dois meses e meio. Isso nada mais é do que os agentes de mercado refletindo a respeito da desconfiança de que tantos estímulos fiscais vão depreciar o valor da moeda ao longo do tempo, causando inflação. Nesse tópico do livro texto de macroeconomia, nós, brasileiros que vivemos a década de 1980, somos especialistas.

A próxima bola da vez é um pacote de infraestrutura. Na campanha presidencial, Biden propôs US$ 2 trilhões para o que chamou de ‘Build Back Better’ (em tradução livre, algo como Reconstruir Melhor). Estradas, pontes, redes de distribuição de eletricidade, indústria automobilística, transporte público, geração de energia renovável, moradia, agricultura, poluição e assim por diante. Para o tamanho da ambição, US$ 2 trilhões parece ser somente o começo – e 155 pontos de inclinação na curva de juros também.

Nesse cenário, como fica o mercado de ações? Com o Fed (Federal Reserve, o banco central americano) mantendo os estímulos monetários e os juros de curto prazo em zero até 2023, conforme comunicado desta semana após a decisão do FOMC (Comitê Federal do Mercado Aberto), a renda variável ainda tem combustível para se valorizar. A inclinação cada vez mais positiva da curva de juros, porém, coloca certos exageros em perspectiva. Empresas com promessas de geração de lucros e fluxo de caixa muito à frente devem continuar a se desvalorizar, enquanto companhias com geração de fluxo de caixa consistente e crescimento orgânico ao longo do tempo devem tomar espaço nas carteiras de investimento. Tempos propícios para ‘value investing’.

Isso não significa que as empresas de tecnologia não vão ter espaço. Ao longo do tempo, empresas com modelos de negócio provados como Apple e afins vão continuar a valorizar. Excessos de valorização, como Tesla e algumas outras empresas mais associadas à pandemia, deveriam desinflar. E os grandes bancos americanos, com suas fortalezas de balanço, serão os grandes beneficiados de uma curva de juros positivamente inclinada.

A verdade é que a curva de juros é somente o começo da conta. Quando o mercado começar a olhar para 2022, a incerteza vai aumentar muito. O estímulo de hoje está tomando emprestado do amanhã – e esse amanhã está cada dia mais próximo. As ações de ‘value investing’ não têm o glamour das ações de ‘growth’, mas, nesse ambiente, são elas que vão entregar retorno. Para quem ainda não fez, nunca é tarde para rebalancear o portfolio.