29/01/2021 - 15:20
O mercado financeiro americano é amplo, líquido e eficiente, mas longe de ser perfeito. Permite, por exemplo, que um grupo de investidores consiga vender, a descoberto, mais de uma vez o número de ações em circulação de uma companhia aberta.
“Vender a descoberto” é uma atividade legítima, e tem gente muito boa por aí especializada no assunto. Um investidor, ou um grupo deles, tem o direito de não confiar no modelo de negócios de uma empresa e acreditar que o mercado está sendo generoso na avaliação do preço das suas ações. A partir daí, é possível, legitimamente, alugar um lote de ações pertencente a um outro grupo de investidores e vendê-las ao mercado (sim, é legítimo vender ações que foram alugadas) imaginando que, com o tempo, o próprio mercado vai perceber que o modelo de negócios da companhia não funciona e derrubar o preço das ações. O grupo que vendeu as ações alugadas, então, compra o lote de volta ao preço mais baixo e o devolve para o grupo que alugou, encerrando o ciclo. Nesse cenário, quem vendeu as ações alugadas (ou seja, “vendeu a descoberto”) realizou um lucro, e quem cedeu as ações para o aluguel amargou um prejuízo, amenizado pelo preço cobrado pelo aluguel.
O gestor que vende a descoberto é arrojado por natureza. Pense na origem da transação: o sujeito está vendendo para outros algo que não é dele, que foi alugado de alguém. Alavancagem pura, que envolve estar disposto a correr riscos ilimitados. O gestor que vende a descoberto se coloca na posição de sofrer o que se chama, no jargão do mercado, de “short squeeze”.
Imagine um grupo diferente de investidores chegando à conclusão de que a empresa em questão tem um modelo de negócios espetacular, ainda não percebido pelo mercado e avaliado de maneira completamente equivocada pelo grupo que vendeu as ações a descoberto. Esse grupo, então, passa a comprar ações, levando o preço para cima. O grupo vendido a descoberto começa a sofrer perdas, e, para gerir seu risco, diminui a posição vendida a descoberto, comprando ações e levando o preço ainda mais para cima. Isso incentiva o grupo que iniciou o processo a comprar ainda mais, o que aumenta em muito a perda dos vendidos que precisam comprar para reduzir seu risco, numa espiral que somente termina quando os vendidos adquirem completamente a posição vendida, zerando o risco. Ou seja, foram expelidos da posição pelos comprados. No neologismo financeiro (com o frequente ataque que nós, do mercado, fazemos ao português), dizemos que foram “squeezados”.
Agora, imagine que o grupo de gestores que vendeu as ações a descoberto estava tão convencido da sua estratégia que, ao invés de vender 2%, 5% ou 10% das ações em circulação, vendeu (usando aluguéis e contratos derivativos) 140% das ações da companhia. Foi isso que aconteceu com as ações da GameStop, empresa especializada na venda de cartuchos de jogos eletrônicos através de lojas físicas. ‘Hedge funds’ especializados em vender ações a descoberto e convencidos de que o negócio da GameStop é tão ruim que nunca atrairia compradores, chegaram ao absurdo de ter uma exposição correspondente a 1,4 vezes as ações em circulação da companhia. Estimaram que a probabilidade de sofrerem um short squeeze era baixíssima.
Segundo a lógica de Aristóteles, “impossibilidades prováveis são preferíveis a possibilidades improváveis”. Esse pessoal que vendeu a descoberto 1,4 vezes a quantidade das ações da GameStop não tem nada de Aristotélico: deixaram a guarda completamente aberta para uma possibilidade improvável. Podem ser grandes gênios da venda a descoberto (e, de fato, vender cartuchos de videogame em lojas físicas não me parece o negócio do futuro), mas não me parecem ser exímios gestores de risco. Nessa brincadeira, dois deles precisaram de aportes durante a semana e, provavelmente, outros vão aparecer.
Tudo começou em um grupo do Reddit com mais de quatro milhões de seguidores chamado ‘Wall Street Bets’ (Apostas de Wall Street). O pessoal ali começou a se interessar pelas ações da GameStop há alguns meses, depois que Ryan Cohen, um dos fundadores da Chewy, comprou uma quantidade importante de ações da empresa e anunciou sua intenção de se envolver na estratégia. No entanto, o movimento mais forte começou depois que ele foi eleito para participar do “Board of Directors”. Daí para alguém perceber que os vendidos estavam alavancados mais do que uma vez a quantidade de ações em circulação foi um pulo. O que se seguiu é um “short squeeze” de proporções épicas. O preço da ação saiu da casa dos US$ 20 para negociar na casa dos US$ 400 em poucos dias, sem falar na volatilidade “intra-day”. Aparentemente, o pessoal do Reddit não tem a menor intenção de parar até ver o preço de US$ 1.000 estampado na tela, além de terem estendido o movimento para outras ações, como os cinemas AMC e a Blackberry.
Muitas das análises desse episódio até agora têm girado em torno da vitória que os pequenos investidores estão impondo aos mamutes de Wall Street. Finalmente, o pequeno investidor, agrupado no Reddit, teve mais força que os ‘hedge funds’ e seus gestores bilionários. Na minha opinião, pode até ser que tenha começado assim. O que veio depois, porém, parece ser um jogo de gente graúda. É uma batalha de “Main Street versus Wall Street”, mas parece que Main Street está recebendo uma bela ajuda de Wall Street.
Não me parece nada impossível que um grupo de hedge funds (e outros tipos) esteja participando da brincadeira do lado dos investidores de varejo. O Reddit foi o estopim, mas a gasolina pode, e deve, estar vindo do próprio mercado. Uma verdadeira guerra de Wall Street versus Wall Street.
Manipulação de mercado? Conluio? Divulgação de informações incorretas? Pode ser tudo isso, como também pode ser nada disso. Da mesma maneira que esses movimentos começam, eles terminam. Em geral, quem paga a conta é o sujeito que entrou por último no Reddit. Espero estar errado.
Esse episódio revela que o investidor de varejo pode ter uma força maior do que imaginamos. Isolados, são reféns do mercado. Agrupados, descobriram que podem ter muito poder. Será o fim da atividade de venda a descoberto? Não acredito. Mas é o fim, sem dúvida, de quem faz venda a descoberto sem gestão de risco. E, sem dúvida, é um fim merecido.