Ambição criativa, louvor crítico, uma multidão de admiradores online: nada disso garantiu a sobrevivência de “1899” para além da primeira temporada. Especula-se sobre motivos, mas a resposta parece ser simples: dinheiro.Os fãs de 1899 tiveram um choque na segunda-feira (02/01), quando seus criadores anunciaram que a nova série da Netflix estava cancelada após apenas uma temporada. “Com o coração pesado, temos que lhes dizer que 1899 não será renovada”, postaram Baran bo Odar e Jantje Friese no Instagram.

“Teríamos adorado concluir essa incrível jornada com uma segunda e terceira temporadas, como fizemos com Dark”, prosseguiu a dupla, também responsável pela primeira série em idioma alemão da gigante do streaming, transmitida entre 2017 e 2020. “Mas às vezes as coisas não ocorrem do jeito que a gente planejou. É a vida.”

Para muitos, a notícia veio do nada: 1899 foi lançada em novembro de 2022 com grande alarde midiático, recebeu críticas entusiásticas por todo o mundo e, segundo as próprias estatísticas da Netflix, emplacou o primeiro lugar de audiência em 55 países.

Estrutura de matriosca

Críticos e numerosos espectadores louvaram o grau de ambição da série, um meta-mistério cheio de guinadas, sobre um grupo de emigrantes do século 19 num navio a vapor rumo à América. A série foi filmada em diversos idiomas, com os atores – inclusive o alemão Andreas Pietschmann, o dinamarquês Lucas Lynggaard Tonnesen e a estrela de Hong Kong Isabella Wei – todos falando nas próprias línguas maternas.

A série também foi uma façanha de tecnologia, uma das primeiras produzidas num palco LED Volume, tecnologia de ponta que permite criar complexos efeitos especiais digitais direto na câmera. Toda a temporada foi rodada no estúdio Dark Bay LED, no Studio Babelsberg, nas cercanias de Berlim.

Segundo os autores, assim como Dark, 1899 foi concebida como série de três temporadas, com uma estrutura semelhante, de matriosca (boneca russa). Cada estágio teria um final aberto, tipo cliffhanger, revelando uma nova camada da história. Encerrar o show após a temporada 1 deixa os fãs com numerosas perguntas sem resposta e muita frustração.

Furor online versus finanças

Assim, como costuma acontecer nos dias de hoje, muitos foram protestar online, exigindo que a Netflix volte atrás em sua decisão. A conta do Twitter #Save1899 já reúne 28,3 mil seguidores, e em questão de horas uma petição na Change.org por uma temporada 2 conquistou mais de 20 mil assinaturas.

Porém é improvável que a Netflix – que não tem como hábito explicar suas decisões criativas ou comerciais – vá satisfazer o desejo dos admiradores de 1899. Até porque a razão para o cancelamento provavelmente é tão banal quanto a séria é complexa: ela não preencheu as expectativas da companhia em termos financeiros.

Louvor crítico e adoração dos fãs à parte, as cifras de 1899 foram um fracasso nos termos da Netflix – ou pelo menos não indicaram êxito suficiente para justificar que ela siga adiante. Seja por ter ficado abaixo da audiência da temporada 3 de Dark, seja por não ter atraído grande volume de novos assinantes. E aumentar a clientela é uma meta primária da Netflix.

Plágio também foi um fator?

Cabe lembrar, ainda, que, enquanto Dark – uma produção alemã de baixo orçamento que alcançou enorme sucesso global – foi uma surpresa vinda do nada, as expectativas em torno de 1899 eram gigantescas desde o início, também por causa de seu orçamento muito mais elevado.

Por outro lado, tem havido especulação de que razões mais sinistras estariam por trás do cancelamento: após o lançamento de 1899, a desenhista de quadrinhos brasileira Mary Cagnin foi a público alegando que a série seria um plágio de seu livro ilustrado Black silence, de 2016.

Contudo, praticamente todo filme ou série televisiva enfrenta alegações semelhantes, e as acusações de Cagnin não parecem ter grande validade legal. Fora alguns lugares comuns de ficção, inclusive a tripulação multinacional numa jornada – em Black silence são astronautas perdidos no espaço, em vez de migrantes num vapor – e de uma obsessão com pirâmides, não se constatam grandes semelhanças entre as duas obras.

Coisas da vida

De resto, a queda do número de assinantes nos Estados Unidos e o crescimento internacional desacelerado, combinados à concorrência pesada da Disney+ e da HBO Max, têm forçado a Netflix a se concentrar mais no essencial. Assim, 1899 não é a única vítima dos cortes da empresa.

Resident evil foi encerrada após uma única temporada, Warrior nun só sobreviveu duas. Ambas poderão retornar em algum outro local – a própria Netflix já ressuscitou shows extintos como Arrested development e Gilmore girls. Porém uma horda de adeptos online, em si, não basta para garantir a retomada de uma série.

O que a Netflix aprecia bem mais do que a adoração dos fãs e o louvor dos críticos são lucros. Se, após oito episódios e dois meses online, 1899 não conseguiu convencer a diretoria que valia os gastos, bem… é a vida.