26/01/2023 - 15:43
por VanDyck Silveira
Caro leitor,
Nas últimas semanas muito foi falado sobre uma moeda comum entre o Brasil e a Argentina, e isso culminou em um encontro de cúpula envolvendo os presidentes dos dois países.
A ideia de uma moeda comum advém de um desejo de Lula e de Fernandez em diminuir a dependência do dólar em transações comerciais regionais, além de uma boa dose de ideologia radicada na Teoria da Dependência, criada por Raul Prebisch nos anos 50, e depois expandida e aperfeiçoada por ninguém menos do que Fernando Henrique Cardoso e Celso Furtado nos anos 60.
A Teoria da Dependência é um visão marxista de mundo e que preconiza que países da periferia, ricos em recursos naturais e subdesenvolvidos, são explorados pelas potências industrializadas capitalistas do eixo ou centro econômico global.
A teoria sugere que para romper com o subdesenvolvimento, países da periferia devem focar na substituição de importados industriais e passar a produzi-los domesticamente através de proteção da indústria local por meio de barreiras comerciais, joint ventures com empresas do eixo, exigências de componentes nacionais, relações comercias sul-sul e renúncias fiscais vultuosas para empresas estrangeiras passarem a produzir em território nacional.
Avançando para o século XXI, após o modelo da Teoria da Dependência ter falhado em todos os lugares onde foi aplicado, e de forma retumbante no Brasil e na Argentina, as “viúvas” da Dependência querem reconstruir o modelo, mas agora na política monetária através de uma moeda comum.
Em tese, essa moeda comum, o SUR, seria um regime monetário adicional ao das moedas locais, o real no Brasil, e o peso na Argentina, e seria utilizado para trocas comerciais entre os dois países. Posteriormente, seria estendido para os países membros do Mercosul, e no futuro mais distante poderia se tornar uma moeda comum regional, análoga ao euro na Europa, que consistirá em uma união monetária com o SUR como moeda comum em todo a região.
Muito bem, até aí temos o sonho! Agora, partimos para a realidade que está contida no trabalho primoroso desenvolvido por Robert Mundell, que recebeu o Prêmio Nobel em Economia pela teoria de Optimal Currency Area (OCA), e Thomas D. Willett, entre outros notáveis, e que se tornou a base para a criação do euro e da Integração Monetária Europeia (EMU na sigla em inglês).
Antes de mais nada, a teoria, e a pratica com o euro, nos mostra que os países membros de uma OCA devem ter economias estáveis e controle fiscal, e endividamento baixo para que não exportem inflação e recessão entre si, e que tenham “business cycles” similares para que a política monetária única não beneficie ou penalize nenhum país.
Também, observamos que para uma OCA funcionar de forma eficiente, os países membros devem ter as seguintes características:
- Alta mobilidade de trabalhadores dentro da área sem exigências de vistos e burocracia desnecessária para que mão de obra possa inclusive enviar dinheiro para o país de origem e contribuir para seu fundo de pensão.
- Mobilidade de capital dentro da área com flexibilidades de preços e de salários para assegurar a fluidez de trabalhadores e capital de acordo com a oferta e demanda.
- Compartilhamento de risco monetário e/ou um arcabouço fiscal que distribua dinheiro para países e regiões onde haja dificuldades econômicas. Um país com excedente fiscal repassaria fundos para outro pais com déficit.
- Similar ciclo de negócios, onde expansões e contrações econômicas sejam muito parecidas.
- Um alto volume comercial entre membros da OCA e que as vantagens comparativas dos membros podem levar a alto nível de especialização para aproveitamento de eficiências através de economias de escala.
- Políticas homogêneas entre os países para que uma única política monetária atenda as necessidades de todos os membros de uma OCA, e isso inclui práticas fiscais.
Uma vez observados os argumentos e critérios para formação de uma OCA, sem ser um economista, qualquer pessoa pode responder se Brasil e Argentina atendem a esses critérios!
A meu ver, uma OCA entre nós e a Argentina não atende a sequer um único critério disposto acima e que, portanto, estamos jogando tempo fora ao debater este tema ao invés de endereçar os tantos problemas prioritários que a economia brasileira tem há várias décadas.
Vamos olhar pelo lado dos argumentos do governo, que parte da afirmação que devido ao alto volume de comércio com a Argentina nos beneficiaríamos de uma moeda única. De imediato, podemos refutar essa lógica uma vez que o total de trocas comerciais com a Argentina não chega a 5% das exportações Brasileiras, e o Mercosul em sua totalidade não chega a 6%.
Levando essa lógica ao pé da letra, nós já temos uma moeda comum para tal necessidade, o dólar, pois a maioria das trocas se dá em commodities e produtos semimanufaturados cujos componentes têm uma forte participação de importados que são pagos em dólar, ou tem seu valor estipulado em dólar, caso das commodities incluindo petróleo.
Entretanto, se o dólar não é a opção por alguma razão desconhecida, como o Brasil tem a maior economia e a moeda mais forte, o comércio com a Argentina (e todo o Mercosul) poderia ser feito em reais se a Argentina tivesse algumas reservas na moeda brasileira, ou, se adotasse o real como moeda corrente como ocorre por lá pelos últimos 20 anos com o dólar.
Seguindo os argumentos do governo, outro ponto seria diminuir a dependência no dólar. Como o comércio entre os dois países tem uma pauta liderada nos seguintes produtos:
Brasil – Argentina
- Partes e acessórios de veículos
- Automóveis de passeio
- Outros produtos industrializados
- Minério de ferro
- Papel, celulose e cartão
Argentina – Brasil
- Maquinário de transporte de mercadoria
- Automóveis de passeio
- Trigo
- Industria de transformação
- Motores e pistões
Como podemos observar, o comércio entre as duas nações ocorre prioritariamente em bens que tem parte relevante de seu valor final em importados, e em commodities, cujos preços são determinados pelo mercado global em dólar. Portanto, uma moeda nova apenas traria ineficiências e contrariedades extras porque haveria a necessidade de trocar unidades de SUR por dólares, e depois converter dólares em reais e pesos. Qual seria a vantagem dessa nova moeda que as moedas atuais não têm?
Olhando pelo lado fiscal, ambos os países vivem em caos com dívidas elevadas e gastos astronômicos pelos governos sem contrapartida de ancoras fiscais criveis. Isso gera inflação, e vemos que tanto Brasil como Argentina têm dificuldade em conter o avanço dos preços no últimos anos.
Atualmente, a Argentina está entre os países com maior inflação no mundo com cerca de 100% em um ano, e essa situação seria exportada para o Brasil que teria que aumentar muito mais uma taxa Selic que já é a mais alta do mundo, e isso empurraria a região, Brasil e Argentina, para uma recessão brutal com desemprego em dois dígitos e uma paralisação da produção industrial. Seria isso que ambicionamos para o Brasil?
Como economista e politicamente independente das correntes atuais, vejo esse debate como SURreal, parafraseando o Alexandre Schwartsman, e totalmente precipitado, inócuo e até irresponsável para um país como o Brasil, que tem outras prioridades nos fronts econômico e social.