A aplicação em massa de uma vacina contra meningite B na Nova Zelândia reduziu em mais de 30% o risco de contrair gonorreia entre as pessoas que foram imunizadas, de acordo com um novo estudo publicado nesta segunda-feira, 10, na revista científica The Lancet.

De acordo com os autores da pesquisa, é a primeira vez que uma vacina apresenta alguma proteção contra a gonorreia e os resultados fornecem um novo caminho para o desenvolvimento de uma vacina específica contra a doença.

Algumas linhagens da bactéria da gonorreia estão cada vez mais resistentes aos antibióticos disponíveis, tornando o desenvolvimento de uma vacina contra a doença uma prioridade global de saúde, segundo os autores do artigo. Até agora, depois de mais de 100 anos de pesquisas, todos os esforços para desenvolver uma vacina contra a gonorreia fracassaram.

No estudo, os cientistas analisaram os dados de uma campanha realizada entre 2004 e 2006, na qual cerca de um milhão de pessoas – o equivalente a 81% da população neozelandesa com menos de 20 anos – foram imunizadas com MeNZB, uma vacina de vesícula da membrana externa (OMV, na sigla em inglês) contra a meningite B.

De acordo com a autora principal do estudo, Helen Petousis-Harris, da Universidade de Auckland (Nova Zelândia), embora as duas doenças sejam muito diferentes em termos de sintomas e modo de transmissão, há uma coincidência genética de 80% a 90% entre as bactérias Neisseria gonorrhoeae e Neisseria meningitidis, o que resulta em um mecanismo de proteção cruzada.

“Nossa descoberta fornece evidências experimentais e uma prova de princípio de que a vacina OMV para meningococos do grupo B pode oferecer uma proteção cruzada moderada contra a gonorreia. Essa é a primeira vez que uma vacina mostra qualquer tipo de proteção contra essa doença”, disse Helen.

“Até agora, ainda permanece desconhecido o mecanismo por trás dessa resposta imune que verificamos, mas nossa descoberta poderá ajudar a desenvolver futuras vacinas que possam proteger tanto contra meningite como contra gonorreia”, afirmou a cientista.

No novo estudo, os cientistas analisaram os dados 14.730 casos indivíduos de 15 a 30 anos de idade, vacinados ou não, sendo que 1.241 haviam sido diagnosticados com gonorreia, 12.487 com clamídia e 1.002 com ambas as doenças.

Entre os que haviam sido vacinados, a probabilidade de contrair gonorreia foi de 41%, enquanto entre os não vacinados foi de 51%. Levando em conta fatores como etnia, condição social, área geográfica e gênero, os cientistas concluíram que ter recebido previamente a vacina MeNZB reduziu a incidência de gonorreia em aproximadamente 31%.

Saúde pública

Segundo os autores do novo estudo, se o efeito for confirmado com outras vacinas semelhantes atualmente disponíveis contra a meningite, administrá-la em adolescentes poderia resultar em um declínio considerável da gonorreia, cuja bactéria está cada vez mais resistente.

Estudos anteriores apontam que uma vacina com 30% de eficácia poderia reduzir a prevalência da gonorreia em mais de 30% dentro de 15 anos, de acordo com outro dos autores do novo estudo, Steven Black, do Hospital Infantil de Cincinnati (Estados Unidos).

“A potencial capacidade de uma vacina OMV contra meningococos do grupo B para fornecer uma proteção contra a gonorreia, mesmo moderada, poderia trazer um benefício de saúde pública substancial, levando em conta a prevalência da gonorreia e a crescente resistência a antibióticos”, disse Black.

Segundo Black, a vacina MeNZB, desenvolvida para controlar uma epidemia de meningite, não está mais disponível, mas os antígenos OMV utilizados em sua fórmula – e que os cientistas acreditam ter provocado uma resposta imunológica contra a gonorreia – foram incluídos em outras vacinas desenvolvidas mais recentemente, como a 4CMenB, que está disponível em diversos países como Brasil, Estados Unidos, Canadá, Asutrália e Reino Unido, com o nome comercial Bexsero.

“Se a vacina 4CMenB, atualmente disponível em vários países, mostrar efeito semelhante aos da vacina MeNZB, administrá-la em programas de imunização de adolescentes poderia resultar no declínio da gonorreia”, afirmou Black.

Os autores alertam que, por causa da variabilidade das diferentes linhagens das bactérias da gonorreia e da meningite, o efeito da vacina pode variar e que a coinfecção de gonorreia e clamídia pode reduzir ligeiramente a eficácia da vacina.

Negligência

Segundo os autores do estudo, há aproximadamente 78 milhões de casos anuais de gonorreia no mundo. Um número cada vez maior de linhagens da bactéria da gonorreia está desenvolvendo resistência a todas as drogas recomendadas para o tratamento. Sem tratamento, a gonorreia pode levar a complicações como doença inflamatória pélvica, gravidez ectópica (fora do útero) e infertilidade, além de facilitar a transmissão do vírus HIV.

O novo estudo foi publicado em conjunto com uma recomendação da The Lancet Infectious Diseases, lançada no domingo, 9, no Congresso Mundial de DST e HIV, no Rio de Janeiro. O autor principal do relatório, Christopher Fairley, do Centro de Saúde Sexual de Melbourne (Austrália), afirma que as DSTs estão sendo negligenciadas globalmente.

“Os tomadores de decisão precisam ser convencidos de que o investimento em estratégias clínicas e de saúde pública podem melhorar o controle das DSTs, mas basear-se apenas na redução das práticas sexuais arriscadas de uma população não será suficiente e é preciso mais pesquisa em tratamentos biomédicos. O desenvolvimento de vacinas contra a gonorreia, cada vez mais resistente às drogas, é provavelmente a única solução sustentável para controlar essas infecções”, disse Fairley.