01/12/2021 - 8:00
No tempo em que o Império Turco Otomano ameaçava a Europa cristã, o jovem visconde Medardo di Terralba, mal havendo chegado ao campo de batalha nas fronteiras do Sacro Império, lança-se contra a artilharia inimiga com um ímpeto ingênuo que faz lembrar Dom Quixote avançando de encontro aos moinhos de vento, convicto de estar investindo contra gigantes. Diferentemente do Cavaleiro da Triste Figura, que termina estendido no chão com contusões e dentes quebrados, o visconde Medardo, atingido por um tiro de canhão no peito, acaba literalmente partido ao meio. Atendido por cirurgiões experientes, o infeliz príncipe cristão, miraculosamente, sobrevive – pelo menos sua metade direita. Assim, carente do seu lado esquerdo, Medardo, depois de lenta e dolorosa convalescença, retorna à sua Terralba natal, cidade imaginária da Itália. Em casa, parentes e empregados logo percebem que a mutilação sofrida por seu filho e senhor não se restringe à dimensão física; o visconde voltou não só sem uma metade do corpo, mas também sem um lado da sua personalidade. O meio homem que voltou da guerra revela-se um ser absolutamente vil e mesquinho, cruel e sádico. É como se toda a bondade e ternura do visconde houvessem ficado enterradas ou perdidas para sempre nos campos de batalha.
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Essa alegoria é a base de uma das narrativas mais instigantes do escritor Ítalo Calvino (1923-1985), intitulada, justamente, “O Visconde Partido ao Meio”, primeira história de uma trilogia denominada “Os Nossos Antepassados”. Publicada em 1952, no contexto do pós-Segunda Guerra e conflagração da Guerra Fria, a “fábula” remete à questão do homem cindido, destituído de toda uma dimensão da sua humanidade, em meio a uma sociedade traumatizada e dividida. Passados setenta anos, mesmo com todas as transformações que desde então ocorreram, é surpreendente constatar a atualidade da narrativa. Se no seu contexto original ela se apresentava como uma irônica denúncia dos efeitos desumanizadores do racionalismo da Modernidade e da polarização ideológica, hoje, no âmbito da nossa realidade líquida e hipertecnológica, a metáfora de ser humano cindido, destituído de toda uma esfera de sua existência, não deixa de ser oportuna como base para reflexão.
Abduzidos pelo poder das mídias sociais e reféns das novas tecnologias e da inteligência artificial, nos vemos, nos tempos que correm, obrigados, quase sem perceber, a viver uma vida pela metade, à imagem e semelhança do visconde Medardo. Partidos ao meio pelo impacto que a Revolução Digital causou, de forma repentina e inclemente, hiper-radicalizada pelos efeitos da pandemia, nos encontramos hoje numa condição de esquizofrenia existencial: nosso lado “máquina”, “operacional”, já supervalorizado desde os tempos em que Calvino formulava a metáfora do visconde partido, parece haver assumido o controle total da nossa personalidade, relegando a metade “afetiva”, “sensitiva”, ao pântano sombrio do esquecimento das batalhas da vida contemporânea. O resultado é esse espetáculo desumano que caracteriza nossa vida social, laboral e pessoal. Tal como o visconde, nos vemos dominados por sentimentos, pensamentos e atitudes mesquinhas e enfermas. Precisamos, urgentemente, reintegrar a outra metade do nosso ser; resgatar o outro lado da nossa vida que ficou para trás. Na metade da narrativa de Calvino, a outra parte do visconde, que se julgava morta, reaparece, retornando no afã de se reencontrar com a sua “cara-metade”. Como termina a história? É óbvio que não vou contar. Fica aqui o convite para que você leitor(a) o descubra por si mesmo(a). Penso que, dessa forma, dou uma pequena ajuda para que você encontre a cura dessa esquizofrenia existencial da qual todos nós, em maior ou menor medida, padecemos.