10/05/2023 - 6:45
App acumula multas no país europeu e queixas de autoridades. Segundo pesquisadores, empresa só age para coibir disseminação de conteúdo extremista quando se vê sob pressão do governo – e, mesmo assim, temporariamente.”Somos um Estado de direito, mas não podemos descartar isso.
Suspender [o Telegram] seria muito sério e claramente o último recurso”, disse em janeiro de 2022 a ministra do Interior da Alemanha, Nancy Faeser. À época, a fala evidenciou a frustração e impaciência do governo alemão com o comportamento da administração do serviço de mensagens Telegram, que também entrou na mira das autoridades judiciais brasileiras no mesmo ano.
Nos últimos dois anos, o Telegram foi acusado rotineiramente por autoridades alemãs de não se adaptar às exigências da Netzwerkdurchsetzungsgesetz, ou NetzDG (Lei de Fiscalização da Rede, em tradução livre), que regula o combate à propagação de conteúdo extremista nas redes sociais e aplicativos de mensagens.
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Criada em 2017, a lei estabelece a obrigação da remoção de conteúdos “claramente ilegais” em até 24 horas, a previsão de multas de até 50 milhões de euros em caso de descumprimento e a instituição de canais de denúncia. O texto mira especialmente redes sociais com mais de 2 milhões de usuários na Alemanha. Em 2021, uma emenda foi adicionada à lei, obrigando as redes a reportarem conteúdo ilegais específicos para a polícia federal alemã, como crimes contra o Estado democrático de direito e à ordem pública e pornografia infantil.
A ameaça de fechamento feita por Faeser ocorreu após o Telegram, que oficialmente tem sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, ter ignorado várias tentativas de contato por parte das autoridades do país europeu.
Na mesma época, o Telegram foi acusado pela classe política de não fazer nada para conter a circulação de mensagens que conclamavam o assassinato dos governadores da Saxônia e de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. “Vai ser dificil encontrar os autores [das ameaças] se dependermos da cooperação do Telegram”, disse à época Christian Pegel, um dos membros do gabinete de governo de Mecklemburgo.
A impaciência com o Telegram também foi expressada pelo ministro da Justiça da Alemanha, Marco Buschmann: “Nossas leis também são aplicáveis ao Telegram”. Já o então secretário do Interior da Saxônia, Boris Pistorius, sugeriu que a Apple Store e o Google Play poderiam cancelar a disponibilização do Telegram caso o serviço não se adequasse às normas alemãs. Pistorius também disse que o Telegram havia se tornado “um verdadeiro acelerador de fogo para aqueles que desprezam o Estado, como extremistas de direita e cidadãos do Reich”.
Na mesma época, o Departamento Federal de Investigações (BKA, na sigla em alemão), organização subordinada ao ministro Buschmann, anunciou a criação de uma força-tarefa para lidar com ameaças e circulação de conteúdo extremista no Telegram. “Nosso objetivo é trabalhar com o Telegram, mas tomaremos medidas se o Telegram não cooperar”, disse à época o chefe do BKA, Holger Münch.
Rede favorita dos extremistas alemães
Fundado em 2013, o Telegram propagandeia em sua página oficial: “Até hoje, divulgamos 0 bytes de dados de usuários para terceiros, incluindo governos”. A filosofia de falta de cooperação com governos da plataforma acabou servindo inicialmente para dissidentes e opositores de ditaduras mundo afora.
Mas, a partir de 2018, o Telegram também se tornou uma das redes favoritas de movimentos de extrema direita da Alemanha e radicais que propagam teorias conspiratórias, atraídos pela falta de moderação de conteúdo da plataforma criada pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov, que expressam ideias “libertárias” sobre a liberdade de expressão. Em 2015, quando questionado sobre o uso do Telegram por grupos terroristas, Pavel Durov disse: “nosso direito à privacidade é mais importante do que nosso medo de que coisas ruins aconteçam, como o terrorismo”.
A atração de extremistas da Alemanha pelo Telegram se intensificou durante a pandemia, quando canais passaram a usar a plataforma para organizar protestos contra medidas de prevenção do governo, e influencers que propagam teorias conspiratórias na linha QAnon viram seu número de assinantes se multiplicar por dez em alguns meses. Em 2022, foi a vez de propagandistas pró-Rússia passarem a recorrer à plataforma quando veículos de comunicação financiados pelo Kremlin tiveram seu acesso bloqueado na Alemanha.
Além das ameaças a governadores alemães, o Telegram também foi o canal de disseminação de notícias falsas que deram lastro para uma tentativa de invasão do Bundestag (Parlamento alemão) por extremistas em 2020 e uma marcha com tochas em frente à residência da secretária de Saúde da Saxônia no ano seguinte.
“Nos últimos três anos, o Telegram se tornou a plataforma mais importante para propagadores de teorias conspiratórias e extremistas de direita nos países de língua alemã”, aponta um relatório divulgado em março de 2023 pelo Centro de Acompanhamento, Análise e Estratégia (CeMAS), uma organização sem fins lucrativos que monitora a propagação de conteúdo extremista em páginas e redes sociais da Alemanha.
Pressão gera resultados – pelo menos por algum tempo
A ministra Faeser rapidamente minimizou sua ameaça contra o Telegram em janeiro de 2022. Mas a fala inicial e as queixas de outros ministros e políticos provocaram resultados – pelo menos temporiamente. Em fevereiro de 2022, o governo alemão finalmente conseguiu contato com a administração do Telegram. Membros do governo se reuniram por vídeo com Pavel Durov.
Após o encontro, Faeser celebrou a abertura do diálogo. “Entramos em contato com a cúpula de administração do Telegram. Em uma discussão construtiva inicial sobre cooperação futura, concordamos em continuar e intensificar o intercâmbio. Esta etapa é uma boa conquista”, escreveu à época a ministra no Twitter.
Uma semana após a reunião, o Telegram bloqueou 64 de canais de conteúdo extremista na Alemanha, incluindo uma conta pertencente a um proeminente teórico da conspiração. Foi a primeira vez que a rede executou uma ação tão ampla para coibir o extremismo.
Após o bloqueio das contas, a ministra Faeser disse que “a pressão está funcionando”. “O Telegram não deve mais ser um acelerador para extremistas de direita, teóricos da conspiração e outros agitadores. Ameaças de morte e outras mensagens perigosas de ódio devem ser apagadas e ter consequências legais”, disse.
Silenciosamente, o Telegram também passou a atender pedidos da polícia alemã para envio de dados de alguns usuários suspeitos de crimes. No mesmo mês, em Rosenheim, no estado da Baviera, sul da Alemanha, a polícia fez uma batida na casa e escritório de um suspeito de operar um canal com mais de 800 participantes que espalhava conteúdo antissemita na plataforma.
De acordo com o CeMas, essa experiência mostrou que o Telegram acaba agindo sob pressão política e que os administradores da rede temem especialmente serem retirados da Apple Store e do Google Play.
Velhos hábitos não morrem
Por outro lado, o CeMas também aponta que as ações do Telegram para colaborar com as autoridades ou coibir conteúdo extremista ou criminoso não são sistemáticas. “Eles não fazem isso de forma sustentável, eles não levam a sério o suficiente”, disse Josef Holnburger, diretor da organização.
Segundo um relatório do CeMas, o número de exclusões de canais extremistas desabou poucos meses após o encontro entre os representantes do Telegram e do governo alemão – em alguns meses do segundo semestre, houve registro de apenas uma exclusão. Segundo o CeMAS, apenas 97 dos 2.505 canais monitorados pelo think tank por espalharem teorias conspiratórias e conteúdo de extrema direita em países de língua alemã foram efetivamente restringidos ou excluídos da plataforma nos últimos três anos.
O CeMAS ilustra os problemas nessa área com o caso de Attila Hildmann, um chef vegano que se tornou um dos principais propagadores de discursos antissemitas na Alemanha. Em fevereiro de 2022, após a reunião entre o governo alemão e a cúpula do Telegram, Hildmann, que fugiu para a Turquia em 2021, teve seus principais canais e grupos bloqueados. Mas ele logo voltou a atuar com contas secundárias, disfarçando seu nome com leves alterações.
“Desde o bloqueio no início de 2022, Hildmann conseguiu criar inúmeros outros canais que não foram bloqueadas até hoje, mesmo após notificação”, diz Holnburger, da CeMAS, que afirma que o Telegram poderia facilmente dispor de ferramentas para identificar canais secundários de figuras como Hildmann. “Os sistemas do Telegram deveriam reconhecer quando um segundo e o terceiro canais são criados após um bloqueio. Mas eles não parecem estar usando isso.”
E, recentemente, autoridades judiciais voltaram a se queixar publicamente que não conseguem manter comunicação com os representantes da plataforma.
“Simplesmente não conseguimos contatar o Telegram”, disse em janeiro de 2023 ao telejornal Tagesschau o promotor Christoph Hebbecker, que investiga crimes cibernéticos na Procuradoria de Colônia. “Nada mudou no Telegram.”
Segundo o promotor, a cooperação funciona quando se trata do Facebook, Instagram ou TikTok. O Telegram, no entanto, ainda é considerado um grande problema. “Sabemos que é muito provável que não consigamos identificar um suspeito porque o Telegram não coopera”, disse Hebbecker.
A cooperação é especialmente problemática quando se trata de pedidos de dados de usuários suspeitos de crimes, como endereços de IP ou e-mails. Segundo levantamento conjunto da emissora WDR e dp jornal Süddeutsche Zeitung, de 230 solicitações de dados feitas pelo Departamento Federal de Investigações (BKA, na sigla em alemão), o Telegram só respondeu em pouco mais de 60 casos. E em apenas 25 pedidos houve efetivamente um envio dos dados solicitados para que as autoridades identificassem suspeitos – e boa parte desses casos se limitou a crimes como pornografia infantil e terrorismo.
Entre agosto e setembro de 2022, membros do governo alemão também demonstraram estupefação quando o Telegram disparou uma mensagem para todos os seus usuários na Alemanha solicitando que eles respondessem uma enquete. Na mensagem, a plataforma perguntava aos seus usuários se eles apoiavam ou não que o Telegram colaborasse com as autoridades quando fossem enviados pedidos dados de usuários suspeitos de cometerem crimes – como se o Telegram fosse se adequar à opinião dos usuários, e não ao que diz a lei na Alemanha.
O Ministério do Interior da Alemanha afirmou que reagiu à atitude do Telegram com “espanto”. “A impressão é que os usuários do Telegram podem decidir como o Telegram deve lidar com as solicitações de dados oficiais. É claro que a situação legal se aplica”, declarou a pasta.
Multas
Em outubro de 2022, após o Telegram esfriar a sua cooperação, o Departamento Federal de Justiça da Alemanha (BfJ) impôs duas multas à plataforma por violações da NetzDG. Ao todo, as multas somam 5,1 milhões de euros (R$ 27,7 milhões).
À época, o ministro da Justiça, Marco Buschmann, anunciou a decisão no Twitter. “O ministério Público Federal emitiu duas multas no valor de vários milhões de euros contra o Telegram. Fico feliz que nosso compromisso consistente tenha nos levado um passo adiante. Nossas leis se aplicam a todos”, escreveu.
Pela NetzDG, redes sociais com mais de 2 milhões de perfis na Alemanha têm que criar e gerir um canal para que os usuários possam denunciar conteúdos ilegais. Além disso, a NetzDG obriga as operadoras a manter representação na Alemanha.
Ao impor as multas, o BfJ verificou que nenhuma dessas duas condições estavam sendo cumpridas pelo Telegram na Alemanha. A violação do artigo sobre a criação do canal de denúncia valeu uma multa de 4,25 milhões de euros. Já a falta de uma representação rendeu penalidade de 875 mil euros. A empresa ainda pode recorrer.
Paralelamente, o governo alemão também pretende endurecer a NetzDG, com uma nova “Lei Contra a Violência Digital”, apresentada em abril, que prevê que qualquer pessoa que seja insultada, ameaçada ou caluniada na internet deverá, no futuro, obter os dados dos autores com mais facilidade para, se necessário, tomar medidas judiciais contra eles. De acordo com o texto, pessoas afetadas devem poder obter o bloqueio de contas de mídia social por meio da Justiça “sob certas condições”, como em casos de “graves violações” e se houver “risco de repetição”.