Fortaleza (CE) e Seropédica (RJ) utilizam matéria orgânica para gerar biogás e reduzir emissões de poluentes. Expansão de modelo esbarra em desafios estruturais e regulatórios.Diante do problema crônico do descarte de lixo no Brasil, estados buscam reduzir os impactos dessa produção com soluções inovadoras e mais sustentáveis. Um dos pioneiros nessa iniciativa é o Ceará, que desde 2018 transforma lixo em gás.

Chamado biogás, ele é gerado pela decomposição da matéria orgânica dos resíduos domiciliares.

Enquanto o chorume, um líquido altamente corrosivo, exige tratamento específico, o biogás pode ser aproveitado na geração de energia. Ele pode ser utilizado diretamente em turbinas ou passar por um processo de purificação, onde são removidos CO2 e outros contaminantes, resultando no biometano – substituto do gás natural que pode ser utilizado em indústrias, comércios e veículos, sem necessidade de adaptações.

Em cidades cearenses, a produção já acontece em grande escala. “O biometano vem de uma produção de seis mil toneladas de material coletado diariamente em Fortaleza e Caucaia. A usina GNR capta e trata o biogás produzido no Aterro Municipal Oeste de Caucaia”, diz Hugo Nery, diretor-presidente da Marquise Ambiental e conselheiro da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema).

A experiência do Ceará não é isolada. Outras cidades do país também investem nessa tecnologia para transformar lixo em energia limpa. No Rio de Janeiro, por exemplo, a cidade de Seropédica já tem seus rejeitos transformados em gás. Uma das responsáveis pelo processo é a companhia Gás Verde, que trata os resíduos do maior aterro sanitário da América do Sul, localizado na cidade.

A produção de biogás a partir de matéria orgânica é uma solução renovável importante no combate às mudanças climáticas. Esse processo reduz significativamente as emissões de metano, um gás 27 vezes mais poluente que o CO2, segundo especialistas ouvidos pela reportagem.

Segundo Mona Lisa Moura, professora do departamento de física da Universidade Estadual do Ceará (UECE), instituição associada à Rede de Energias Renováveis e Inovação do Estado do Ceará, o Brasil possui um enorme potencial para a produção de biogás, especialmente devido à sua grande produção agropecuária.

“O aproveitamento de resíduos como esterco, palha de cana-de-açúcar e resíduos orgânicos permite não apenas a geração de energia, mas também a redução de impactos ambientais”, diz Moura.

Biogás como alternativa energética

A transformação do lixo em energia começa nos aterros sanitários, onde a matéria orgânica descartada passa por um processo de decomposição bacteriana em um ambiente sem oxigênio. É daí que sai o biogás, composto majoritariamente por metano, além de outros gases como nitrogênio e óxidos de enxofre e nitrogênio. Esse gás pode ser aproveitado diretamente na geração de energia elétrica por meio da queima para movimentar turbinas.

Para que o biogás seja convertido em biometano, ele passa por um processo de purificação em usinas instaladas nos aterros. Nessa etapa, as moléculas são transformadas em um gás combustível pronto para uso. Esse biometano pode então ser injetado na rede de distribuição de gás natural ou utilizado como combustível.

A infraestrutura para essa conversão inclui uma rede de dutos nos aterros sanitários, responsável por captar o biogás gerado na decomposição do lixo e levá-lo até as usinas.

“O Brasil tem uma grande oportunidade nesse sentido, pois ainda possui lixões a céu aberto que precisam ser transformados em aterros sanitários e, consequentemente, podem ampliar a produção de biometano no país”, afirma Marcel Jorand, CEO da Gás Verde.

Atualmente, a empresa administra dois aterros sanitários na região Sudeste que geram biogás e biometano: um em Seropédica (RJ) e outro em São Paulo (SP). Apenas a unidade de Seropédica recebe cerca de 10 mil toneladas de resíduos por dia.

No Ceará, uma parceria entre o setor público, a empresa que distribui gás de petróleo no estado e companhias privadas permitiu que a região se tornasse referência no uso do biometano. “Hoje, 15% do gás consumido no Ceará já vem do aterro sanitário”, explica Nery, da Marquise Ambiental.

A usina cearense tem capacidade para produzir 100 mil metros cúbicos por dia e, segundo Nery, se destaca por oferecer uma alternativa energética com preços mais previsíveis, já que sua atualização não está atrelada ao barril de petróleo ou à variação do dólar.

Além de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, a utilização desse combustível renovável contribui para a diversificação da matriz energética nacional. No entanto, o avanço do setor depende da substituição de lixões a céu aberto por aterros sanitários, garantindo a infraestrutura necessária para captação e aproveitamento do gás.

É viável em todo Brasil?

A expansão do biogás e do biometano no Brasil, embora promissora, enfrenta desafios estruturais e regulatórios.

Estimativas da Associação Brasileira do Biogás e do Biometano (Abiogás) apontam que é possível produzir mais de 120 milhões de metros cúbicos de biometano por dia, volume suficiente para atender até 70% da demanda de diesel do país.

Porém, como destaca Nery, a adoção dessa tecnologia em outras cidades e centros urbanos depende da coleta eficiente e da separação adequada dos resíduos, da quantidade de matéria orgânica disponível e da infraestrutura e demanda para escoamento do gás. “O biometano requer um grande volume de resíduos orgânicos para que a produção seja viável e tenha escala”, explica.

Além disso, há obstáculos logísticos, especialmente pela concentração dos gasodutos no litoral. Isso torna mais desafiadora a implementação de usinas em cidades menores e no interior. “Cidades pequenas precisam se conectar aos aterros regionais já existentes ou em construção, pois soluções individuais seriam economicamente inviáveis”, diz Maranhão, da Abrema.

“Muitos Estados ainda estão em fase inicial de discussão sobre o biometano”, pondera Nery. “É um mercado relativamente novo, mas está numa tendência de crescimento.”

Internacionalmente, o Brasil ainda está começando, mas outros países já adotam modelos semelhantes com sucesso. Na Alemanha, por exemplo, 99% dos aterros sanitários capturam metano para gerar energia, e o país apresenta uma taxa de reciclagem de 67%. Nos Estados Unidos, muitos aterros geram eletricidade e biometano para abastecer frotas de caminhões e redes de gás.

O problema do lixo no Brasil

Embora os aterros sanitários sejam previstos como a solução ambientalmente adequada pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), apenas 58,5% dos resíduos urbanos do país são destinados corretamente, segundo dados de 2023 da Abrema. O restante acaba em lixões a céu aberto ou em locais inadequados, ampliando os riscos ambientais.

Especialistas ouvidos pela DW apontam que um dos principais entraves para uma gestão mais eficiente do lixo é a falta de comprometimento dos municípios com a destinação correta dos resíduos, agravada pela ausência de financiamento para a infraestrutura necessária.

A cobrança pelo serviço de coleta e tratamento de resíduos, essencial para garantir sua viabilidade, ainda não é realidade em muitas cidades. Enquanto água, luz e telefonia são cobrados dos consumidores, a gestão do lixo segue sem um modelo sustentável de financiamento em diversos municípios, o que compromete os investimentos na área.

“Muitas prefeituras não cobram por esse serviço e acabam sem condições de cobrir os custos”, afirma Pedro Maranhão, presidente da Abrema.

Além da falta de recursos, outro problema é que mais de 95% do material coletado no país ainda é descartado no solo, sem reaproveitamento.

“Temos quase dois mil lixões ainda em operação no Brasil, e esse cenário reflete a ausência de estratégias adequadas por parte dos municípios”, pontua Carlos Silva Filho, presidente honorário da International Solid Waste Association (ISWA).

A reciclagem, apontada como uma solução para reduzir a sobrecarga dos aterros, enfrenta desafios econômicos. O alto custo da matéria-prima reciclada em comparação com a virgem torna o processo menos atraente financeiramente. Além disso, empresários do setor apontam que a bitributação sobre materiais recicláveis desestimula sua reutilização.

“A matéria-prima que já pagou imposto quando foi transformada em produto volta a ser tributada ao retornar como material reciclado. Isso impede avanços”, afirma Maranhão.

Transformar essa realidade requer planejamento e investimentos, dizem especialistas. Um estudo do Instituto Brasileiro de Resíduos Sólidos calcula que o Brasil precisaria de R$ 60 bilhões para atingir as metas do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que previa o encerramento de todos os lixões ainda em 2024 e a recuperação de 20% de recicláveis secos até 2040 (partindo de um índice de 2,2% em 2020). No entanto, ainda não há uma fonte de financiamento definida para viabilizar essa estrutura.

Silva Filho, da ISWA, vê grande potencial do setor de resíduos sólidos para a mitigação das emissões globais. Ele enfatiza que, além de reduzir suas próprias emissões, o setor pode ajudar outros segmentos ao substituir combustíveis fósseis e matéria-prima virgem. “É fundamental fechar os lixões e avançar nas práticas de gestão de resíduos, para que o setor se torne um aliado no combate ao aquecimento global”, diz.