27/02/2025 - 7:10
Marcado por debates intensos e pressão política, processo de licenciamento para poço exploratório da Petrobras na foz do rio se aproxima do fim e marca auge da tensão vivida por setor do Ibama criado em 2002.O sim ou não para a Petrobrás perfurar mais um poço exploratório na bacia marítima da Foz do Amazonas está prestes a sair. Negado em 2023, o pedido de licença do bloco FZA-M-59 é reavaliado pelos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) desde que a petroleira entrou com um recurso.
A pressão vivida pelos servidores do órgão ambiental é inédita. Nem o pré-sal, com poços que chegam a 7.700 metros de profundidade, provocou debates públicos tão acalorados. Isolados geograficamente do cerco político de Brasília, o departamento responsável pelo licenciamento sediado no Rio de Janeiro não está imune à tensão.
“Não é porque o presidente da República está dizendo que a gente tem que dar uma resposta logo que a gente vai correr com nosso parecer”, diz à DW Leandro Valentim, servidor do Ibama e diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente, Ascema.
Em uma entrevista recente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o Ibama faz “lenga-lenga” numa crítica explícita ao processo de licença buscado pela petroleira. Todo o estardalhaço não impacta o trabalho técnico, mas deixa muitos analistas apreensivos, diz Valentim.
“Tem muito ineditismo, muita insegurança, por isso estamos tentando muito cuidado com todos os pormenores”, afirma sobre o licenciamento, lembrando que o petróleo será buscado num solo marinho ainda inexplorado em uma região de fortes correntezas e alta sensibilidade ambiental.
Foi sob este clima de nervosismo que chegou a notícia do afastamento temporário do atual coordenador de Licenciamento de Petróleo e Gás do Ibama, Ivan Werneck Sanchez Bassères. Segundo fontes ouvidas pela DW, isso já era aguardado e não ocorre por motivações políticas. Bassères participará de um programa das Nações Unidas e a expectativa é que um servidor que já tenha ocupado a função o substitua.
O fim do monopólio e início do controle
Dona do monopólio petrolífero no país por mais de quarenta anos, a Petrobras ditou sozinha os rumos do setor no país. A empresa se autorregulava, definia onde explorar e não há evidências de que preocupações ambientais tenham influenciado suas decisões. O histórico dessa evolução está na pesquisa de Cristiano Vilardo, servidor do Ibama e doutor em planejamento energético pela a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O cenário mudou em 1997, quando uma lei permitiu a entrada de outras petroleiras no mercado brasileiro. Neste contexto, surgiu a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) em 1998, que passou a definir as zonas de exploração, sua divisão em blocos e as rodadas de licitação.
Criado em 1989, foi só em 2002 que o Ibama incorporou analistas ambientais concursados numa coordenação específica para cuidar do processo de licenciamento ambiental de petróleo e gás. Até então, a avaliação era feita por consultores externos, com autonomia limitada e contratos temporários.
“A coordenação sempre trabalhou num clima de liberdade, focada na questão técnica. De Brasília, ouvíamos relato de políticos que iam à mesa do técnico responsável pela análise de alguma proposta de licenciamento. Isso no setor de petróleo nunca aconteceu”, afirma Valentim.
Licença para explorar
As primeiras incursões em busca de petróleo na Foz do Amazonas datam de 1946. Os estudos sísmicos, feitos a bordo de embarcações carregadas de equipamentos específicos que investigam o fundo do mar atrás dos recursos, foram feitos pelo então Conselho Nacional de Petróleo (CNP). A tese de doutorado de Sérgio Estanislau do Amaral, de 1954, datilografada com máquina de escrever, detalha o material encontrado em três poços perfurados no estado do Pará.
Publicamente, não se sabe bem como a busca de petróleo nesta parte do país se deu nos anos de monopólio da Petrobras. Depois da abertura às concorrentes, foram perfurados 11 poços de exploração na região entre 2001 e 2011, segundo dados do Ibama.
Em uma dessas perfurações, um acidente causou preocupação. Em 2011, uma sonda operada pela Petrobras foi arrastada pelo mar de forma inesperada. Foram feitas várias tentativas de resgate do equipamento, abortadas “devido a dificuldades operacionais ocasionadas por correnteza elevada”, apontam documentos internos aos quais a DW teve acesso. A empresa abandonou o poço e disse que não houve vazamento de petróleo.
“Um conjunto de problemas técnicos”
Em 2013, a bacia marítima da Foz do Amazonas, também chamada de Margem Equatorial, entra oficialmente no mapa de novas fronteiras. Foi quando a ANP fez uma rodada de licitações e blocos foram arrematados pela Total, BP e Petrobras.
O alerta de alto risco soou antes mesmo da rodada programada, mas não surtiu efeito. Um parecer técnico emitido antes do leilão apontava para a falta de conhecimento sobre o local, combinado com um litoral extremamente sensível e importante ecologicamente falando.
A francesa Total tentou assumir a dianteira na corrida pelo combustível fóssil provavelmente armazenado num dos blocos arrematados. Em 2018, o Ibama negou o pedido de licenciamento devido a “um conjunto de problemas técnicos” apresentados pela empresa ao longo do processo, que abandonou a corrida de vez. A britânica BP seguiu o mesmo caminho. Só ficou a Petrobras.
“As dificuldades encontradas no licenciamento ambiental não surpreendem a quem leu com atenção os alertas feitos (…). Todos os temas sensíveis eram conhecidos na partida, há dez anos: escassez de informações primárias sobre a biodiversidade local, ausência de bases hidrodinâmicas robustas para subsidiar modelagens confiáveis, limitações e desafios para estruturar planos de emergência efetivos para a região (incluindo a questão transfronteiriça), dentre outros”, concluiu Vilardo em 2023 em sua tese de doutorado.
Uma nova rodada de leilão de petróleo está no calendário da ANP para junho. Ela inclui 47 blocos de exploração na Foz do Amazonas – apesar de toda a indefinição sobre a viabilidade ambiental.
“Nada muito tranquilo”
Caso o Ibama conceda a licença buscada neste momento pela Petrobras, a empresa poderá perfurar o bloco 59, explorar o que tem lá embaixo e, se encontrar petróleo numa quantidade suficiente para comercializar, um outro processo de licenciamento será aberto para o uso e destinação do recurso. Pode ser que tudo isso demore uma década.
A plataforma Deepwater Horizon, no Golfo do México, estava na fase inicial do projeto quando explodiu, em 2010, e matou 11 trabalhadores. Ela era operada pela BP, que obteve a licença de perfuração exploratória do Minerals Management Service, então agência responsável dos Estados Unidos. O combustível cru vazou para o mar ao longo de três meses e provocou a pior catástrofe por derramamento de petróleo daquele país.
“É uma licença de exploração, mas não é nada muito tranquilo. No caso do Brasil, os riscos são reduzidos porque a indústria não tem interesse nenhum que aconteça algum tipo de vazamento, não pela preocupação ambiental, mas porque é o recurso com o qual eles pretendem ganhar dinheiro e ele se perderia num vazamento. E as técnicas de segurança evoluíram muito”, analisa Valentim.
A avaliação segue um rito com base em critérios técnicos, normativos e conhecimento científico publicado. Quando a prospecção na bacia marítima da Foz do Amazonas começou, por exemplo, não se tinha conhecimento do Grande Sistema de Recifes do Amazonas (GARS), revelado por pesquisas publicadas e assinadas por cientistas brasileiros em 2018. Sua existência agora não pode ser mais ignorada.
E se for “não” de novo?
Apesar da pressão política, quem decide se a Petrobras tem condições de seguir seu plano de exploração no local é o presidente do Ibama, segundo as leis brasileiras. O atual, Rodrigo Agostinho, negou a licença com base no parecer técnico dos analistas, mas, quando a Petrobras recorreu, ele mandou o pedido de volta para análise.
“Os analistas têm que estar blindados para não receber diretamente essa pressão política toda. É importante resguardar a autonomia da equipe técnica”, afirma Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
Em 2018, Araújo comandava o órgão quando vetou, com base em deficiências técnicas, a tentativa da Total de explorar a Foz do Amazonas e encerrou o processo. À DW, ela disse que o caso não repercutiu tanto como agora e que não teve receio de ser demitida. Ela acabou pedindo sua exoneração no ano seguinte, após o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, questionar o aluguel de carros usados em operações do Ibama.
“Se no pedido de reconsideração do bloco 59 a resposta for ‘não’ de novo, isso tem que ser respeitado. Se Rodrigo Agostinho disser ‘não’ novamente, é dele a palavra final. A autoridade máxima federal no licenciamento ambiental federal é o presidente do Ibama, não é o presidente da República e nem o Ministério de Meio Ambiente”, ressalta a ex-chefe do órgão.
Araújo destaca ainda que a queima dos combustíveis fósseis é a a maior causadora do aquecimento do planeta e da crise climática. Investir nessa fonte de energia enquanto todos veem o planeta literalmente arder, diz, é um erro.