Em pronunciamento a parlamentes dos EUA, presidente inflou números sobre ajuda à Ucrânia, exagerou gastos com clima e até mesmo distorceu a história da construção do Canal do Panamá.O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez na noite de terça-feira (04/03) seu primeiro pronunciamento ao Congresso americano desde que assumiu o segundo mandato, congratulando-se com realizações do seu governo nos últimos 43 dias. “Estamos só começando”, anunciou.

Mas várias afirmações incluíam exageros ou dados completamente falsos em temas como ajuda financeira à Ucrânia, clima, imigração e até a história do Canal do Panamá. A DW e a agência AP verificaram algumas das afirmações.

EUA forneceram mais ajuda à Ucrânia do que os europeus?

Afirmação: “Gastamos talvez 350 bilhões de dólares. […] E eles [os europeus] gastaram US$ 100 bilhões […] Biden aprovou mais dinheiro para essa luta do que a Europa gastou”, disse o republicano Trump, fazendo referência ao seu antecessor imediato na presidência, o democrata Joe Biden.

Verificação de fatos da DW: Falso.

Donald Trump tem feito essa afirmação repetidamente desde fevereiro, mas nunca forneceu nenhuma prova. As fontes disponíveis publicamente relatam números bem diferentes: De acordo com o Instituto Kiel para a Economia Mundial (IfW), um think tank alemão que monitora os gastos ocidentais com a Ucrânia, a ajuda financeira dos EUA aos ucranianos de fevereiro de 2022 até 31 de dezembro de 2024 somou 114 bilhões de dólares.

Em contrapartida, a Europa (incluindo a Turquia) direcionou nesse mesmo período 132 bilhões de dólares. Portanto a proporção de ajuda à Ucrânia entre os EUA e a Europa é completamente diferente do que Trump está retratando. Os números estão disponíveis no Ukraine Support Tracker, que o IfW disponibiliza na internet para divulgar a ajuda militar, financeira e humanitária para a Ucrânia.

O IfW leva em conta apenas o apoio fornecido diretamente, portanto seus números diferem de outras pesquisas, em que outros gastos são registrados, como o reabastecimento dos estoques de armas dos EUA após entregas à Ucrânia.

Mas dados do próprio governo dos EUA sobre a ajuda à Ucrânia tampouco coincidem com os números de Trump. De acordo com o Ukraine Oversight Working Group de Washington, a contribuição americana para a ajuda à Ucrânia totalizou 203 bilhões de dólares.

“Desde a invasão em ampla escala da Rússia na Ucrânia, em fevereiro de 2022, o Congresso aprovou ou disponibilizou quase 183 bilhões para a Operação Atlantic Resolve e a resposta mais ampla da Ucrânia. Além disso, os Estados Unidos forneceram 20 bilhões de dólares em empréstimos sob a iniciativa de aceleração de receita extraordinária das nações do G7”. O Departamento de Defesa dos EUA também informa o mesmo valor, de cerca de US$ 183 bilhões.

A questão de quanto cada país gastou com a Ucrânia depende também de quais serviços estão incluídos. Com base no cálculo padronizado do Ukraine Support Tracker, as nações da Europa, incluindo as instituições da União Europeia, forneceram muito mais ajuda à Ucrânia do que os EUA.

Acordo Climático de Paris custou trilhões de dólares para os EUA?

Afirmação: “Eu retirei [os EUA] do injusto Acordo Climático de Paris, que nos custou trilhões de dólares, que outros países não pagaram”, disse Trump no pronunciamento.

Verificação de fato da DW: Falso.

O Acordo Climático de Paris entrou em vigor em novembro de 2016. Seu principal objetivo é garantir que a temperatura média global não aumente mais de 2°C, ou, de preferência, apenas 1,5°C, em comparação com os níveis pré-industriais. De cinco em cinco anos, cada país decide o que quer fazer para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Se essas metas não são atingidas, não há punição: os compromissos são voluntários.

É verdade que a luta contra as mudanças climáticas custa muito dinheiro. Não apenas para as tecnologias que reduzem as emissões de gases de efeito estufa: também são necessários fundos financeiros para o mundo se adaptar às consequências das mudanças climáticas e para lidar com ondas de calor mais extremas, secas mais frequentes ou furacões mais devastadores. De acordo com o pacto, os países mais ricos são particularmente solicitados a apoiar financeiramente outros mais afetados pelas mudanças climáticas, mas que têm menos recursos à disposição.

Por exemplo, há o Fundo Verde para o Clima (GCF), que foi formulado antes do Acordo Climático de Paris. Em 2014, o então presidente dos EUA, Barack Obama, anunciou que queria direcionar 3 bilhões de dólares ao GCF. Em 2023, a então vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, prometeu ao GCF mais 3 bilhões de dólares. Naquela época, 2 bilhões de dólares do valor que Obama havia prometido haviam sido efetivamente pagos.

Entretanto, as cartas de intenção e promessas não se traduzem necessariamente em pagamentos. Os fundos devem ser aprovados pelo Congresso dos EUA. Até o final de 2024, de acordo com o GFC, a segunda carta de intenção dos EUA não havia sido convertida em pagamentos.

No início de sua presidência, em 2021, Joe Biden anunciou que investiria 11,4 bilhões de dólares anualmente em projetos climáticos em todo o mundo até 2024 – não incluindo apenas o GCF. De acordo com o Departamento de Estado dos EUA, o país gastou 1,5 bilhão de dólares nesses projetos em 2021. Esse valor subiu para 5,8 bilhões de dólares em 2022 e 9,5 bilhões de dólares em 2023. A previsão para 2024 era de 11 bilhões, que haviam sido prometidos por Biden.

Dessa forma, nesses anos todos, o valor total gasto pelos EUA em programas internacionais de proteção climática somou efetivamente 27,5 bilhões de dólares. Mesmo se fossem incluindo números de outros anos, os EUA nunca chegariam perto de ter pago trilhões de dólares como afirma Trump.

38 mil americanos morreram durante a construção do Canal do Panamá?

Afirmação: “O Canal do Panamá foi construído pelos americanos para os americanos, não para os outros. Mas outros poderiam usá-lo. Mas foi construído a um custo enorme em sangue e riqueza americanos. 38.000 trabalhadores morreram na construção do Canal do Panamá (…) Nós o demos ao Panamá e vamos pegá-lo de volta”, disse Trump, reforçando seu plano de retomar o canal, que passou para controle dos panamenhos em 1999.

Verificação de fatos da DW: Falso.

Em primeiro lugar, a transferência do controle Canal do Panamá não foi um presente dos EUA para o Panamá, como Donald Trump tem afirmado repetidamente, mas o resultado de longas negociações. A transferência foi baseada em dois acordos: o Tratado do Canal do Panamá, que estipulava que o controle dos EUA sobre o canal terminaria em 31 de dezembro de 1999 e o Tratado de Neutralidade, que estabeleceu que “após o término do Tratado do Canal do Panamá, somente a República do Panamá poderá operar o canal”.

Com relação à declaração de Trump de que o canal foi construído por americanos e que os Estados Unidos sofreram 38.000 mortes no processo: os números reais são bem menores, especialmente para a fase de construção do canal que envolveu diretamente os EUA, entre 1904 e 1914.

As condições de trabalho durante a construção do Canal do Panamá, que foi iniciada pelos franceses entre 1881 e 1889, eram extremamente difíceis para os padrões atuais. A carga de trabalho, mas também doenças, provocaram muitas mortes nos canteiros de obras.

O site da Autoridade do Canal do Panamá informa, porém, que o número de mortos somou mais de 25.000 nas duas fases da construção do canal, a primeira, dirigida pelos franceses, e a segunda, pelos americanos. Mais de 20 mil desse total de mortos foi registrado na fase francesa, que terminou em 1889.

Os americanos assumiram a construção em 1904. De acordo com registros hospitalares, 5.609 pessoas morreram de doenças e acidentes durante o período de construção americano, quando mais de 55.000 pessoas foram empregadas. A maioria esmagadora dessas 5.609 mortes, segundo historiadores, envolveu cidadãos de países do caribe empregados na obra, e não americanos. “O número de americanos brancos que morreram foi cerca de 350”, apontou o historiador David McCullough, num livro sobre a construção do canal.

Números sobre imigração

Afirmação: “Nos últimos quatro anos, 21 milhões de pessoas entraram nos Estados Unidos. Muitos deles eram assassinos, traficantes de pessoas, membros de gangues”, disse Trump, que fez do combate à imigração irregular uma das suas principais bandeiras de campanha.

Verificação de fatos da agência de notícias AP: Falso

O número, que Trump cita regularmente, é altamente inflado. A Alfândega e a Proteção de Fronteiras dos EUA registraram mais de 10,8 milhões de prisões por travessias ilegais a partir do México de janeiro de 2021

até dezembro de 2024.

Mas isso são prisões, não pessoas. Sob restrições de asilo durante a pandemia de pandemia de covid-19, muitas pessoas atravessaram mais de uma vez até conseguirem, pois não havia consequências legais para quem fosse mandado de volta ao México. Portanto, o número de pessoas é menor do que o número de detenções.

Também não há indicações de que outros países estejam enviando seus criminosos ou criminosos ou pessoas com doenças mentais através da fronteira, apesar da fala de Trump.