30/05/2016 - 0:00
Fabricar picapes é uma arte que vem desde Henry Ford. Em 1913, um chassi do Ford T foi usado para dar origem ao primeiro modelo “pick-up” (pegar, em inglês). Portanto, fabricar picapes não exige nenhuma técnica desconhecida da indústria automobilística. Mas no Brasil as coisas são diferentes.
Curioso como nosso País costuma ser diferente em muitas coisas… Aqui nessa nação-continente não basta fazer uma picape tradicional – é preciso ser inovador e ousado, além de competente na execução. É por isso que nem todas as marcas fazem sucesso no nicho de picapes, pois nem todas têm a inovação, a ousadia e a competência na execução.
Claro que não é possível medir coisas intangíveis, mas se fôssemos fazer um ranking do trinômio inovação/ousadia/competência no mercado de picapes brasileiras, a Fiat seria líder, seguida de perto pela Volkswagen. Todas as outras marcas deixam a desejar em algum desses três itens. E eu explico o porquê.
Hoje o mercado brasileiro tem cinco tipos de picapes: pequenas, compactas, médias, grandes e caminhonetes. Somados, esses cinco nichos já venderam 76.618 picapes nos primeiros quatro meses deste ano. No ranking de vendas, a Fiat soma 27.537 emplacamentos (35,9%), seguida pela Volkswagen com 16.511 (21,5%), pela Toyota com 11.272 (14,7%) e pela Chevrolet com 8.713 (11,4%). Esse número deve mudar ao longo do ano porque a Chevrolet S10 passou por uma profunda reestilização e, em consequência dessa transformação, teve sua produção diminuída nos últimos meses (agora vai crescer).
Qual a razão de a Fiat ser líder não apenas em vendas de picapes, mas principalmente em inovação/ousadia/competência? Simples: ela soube identificar oportunidades, teve coragem de criar um novo nicho e foi competente na execução. No início dos anos 1970, só a Ford e a Chevrolet vendiam picapes no Brasil. Quando a Fiat lançou sua primeira “jabuticaba” (a fruta que só existe no Brasil), o mercado ampliou-se de forma considerável. Nossa primeira picape-jabuticaba foi o Fiat 147 Pick-Up.
Que ousadia! Uma picapinha derivada de carro de passeio! Logo a ideia foi imitada. A Chevrolet lançou a Chevy 500 (derivada do Chevette), a Volkswagen criou a Saveiro (derivada do Gol) e a Ford fez a Pampa (derivada do Corcel II). E nem era uma ideia nova, pois nos Estados Unidos havia uma história de carros meio bizarros, que eram de passeio mas tinham caçamba, como o original Ford Ranchero e o Chevrolet El Camino. A Fiat adaptou a ideia ao Brasil, criando veículos menores, e todo mundo lucrou com aquilo.
Hoje, com apenas três modelos (Fiat Strada, VW Saveiro e Chevrolet Montana), as picapinhas respondem por 44,7% das vendas de picapes, enquanto as tradicionais médias, com seis representantes (Toyota Hilux, Chevrolet S10, VW Amarok, Ford Ranger, Mitsubishi L200 e Nissan Frontier), não passam de 39,0%. Mais que isso: com apenas dois modelos (Fiat Toro e Renault Oroch), as compactas já detêm 16,1% desse mercado.
A Toro é a segunda “jabuticaba” da Fiat e comprova sua ousadia. Para se ter uma ideia, em abril as duas picapes mais vendidas do mercado foram exatamente as duas “jabuticabas” da Fiat: Strada (5.425 emplacamentos) e Toro (3.954). Em terceiro ficou a Saveiro (3.042) e só em quarto lugar aparece uma picape tradicional, a Hilux (2.744 licenciamentos).
Alguns podem dizer as picapes compactas da Fiat e da Renault não são exatamente “jabuticabas”, pois nos Estados Unidos também existe uma picape derivada de crossover: a Honda Ridgeline, oriunda do modelo Pilot. Verdade. Só que não. A Ridgline pode até ter o conceito, mas não o tamanho que faz sucesso no Brasil. Afinal, com seus 5,33 m de comprimento, a picape-SUV da Honda é do porte de uma S10, que mede 5,36 m. Por outro lado, as “jabuticabas” Toro e Oroch medem apenas 4,91 m e 4,69 m, respectivamente.
Considerando tudo isso, o que diferencia a Fiat no mercado de picapes de todas as outras marcas? Repito: a liderança em inovação, ousadia e competência na execução. Para comprovar minha tese, vou analisar as demais montadoras, caso a caso.
Começando pela Volkswagen: tem extrema competência na execução, pois tanto a Saveiro quanto a Amarok são excelentes produtos (considero a Saveiro melhor que a Strada, inclusive). Mas, embora tenha sido líder durante alguns anos com a Saveiro, a Volks não soube inovar e perdeu a primeira posição quando a Strada surgiu com cabine estendida (que passou a representar 50% das vendas da picapinha Fiat). Depois, quando a Volks finalmente decidiu fazer uma Saveiro com cabine estendida, a Fiat já tinha uma Strada cabine dupla (e novamente ela passou a deter 50% das vendas do modelo). Quando a Volks lançou a Saveiro com cabine dupla, a Fiat criou a Strada cabine dupla com três portas (e logo depois a Toro). A Volkswagen é lenta como um elefante quando se trata de inovar/ousar em picapes.
A Chevrolet, por sua vez, se teve a ousadia de fazer uma picape pequena, não teve a competência necessária em sua execução. Em determinado momento, para adaptar o modelo à sua linha de montagem, chegou ao cúmulo de piorar tecnicamente a Montana na troca de geração. Ela era derivada do Corsa, tinha subchassi e ótima dirigibilidade, e passou a ser derivada do Agile (que em pouco tempo desapareceu do mercado), com os braços da suspensão traseira presos diretamente na parte inferior do monobloco. O consumidor, claro, rejeitou-a, e hoje a Montana ocupa um melancólico 9º lugar entre 14 picapes. A excelência que a General Motors exibe na fabricação da S10, infelizmente, foi descartada na criação da Montana de segunda geração, embora os engenheiros da GM na época rechaçassem a teoria do retrocesso.
A Ford é um caso crítico. Como inventora das picapes, sua tradição no setor é inegável. Nos Estados Unidos, a F-150 é um dos modelos mais vendidos há muitos anos. Sua linha de picapes é fabulosa. No Brasil, a Ranger foi uma das pioneiras no nicho de picapes médias. E a saudosa Pampa liderou por bom tempo o mercado de picapinhas. A versão com tração 4×4 é procurada até hoje por fazendeiros do Brasil inteiro. No mercado de usados, a Pampa vende mais de 1.500 unidades/mês.
Entretanto, em algum momento, a Ford se perdeu. Não tem cabimento que, com toda sua tradição em picapes, a Ford se contente com as esquálidas vendas da Ranger, que ficou apenas em 10º lugar em abril, ganhando apenas da esquecida Nissan Frontier e das inexpressivas Lifan Foison, RAM 2500 e Rely Pick-Up.
O problema é que a Ford Brasil não tem mais autonomia para criar um produto apenas para o mercado local – assim, enquanto a Ford de outro país não topar ser parceira de uma picapinha derivada do Ka ou de uma compacta derivada do EcoSport, a tradição da marca nesse nicho vai sendo jogada no lixo do esquecimento, por culpa da política global da empresa. Uma pena!
Agora falemos das japonesas. A Toyota é conservadora e cautelosa em seus movimentos. Tem funcionado bem assim e a Hilux já está há anos posicionada como um produto de sucesso. Atualmente, é a picape média mais vendida no País, com 11.272 emplacamentos este ano, quase o dobro de sua seguidora mais próxima, a S10. Por isso, não dá para esperar que a Toyota venha com uma picape do Etios; não combina com o DNA da marca.
Da Mitsubishi, que ainda é competitiva com a L200, também não se pode esperar uma picape maior ou menor.
Da Nissan, sim, podemos esperar mais. A Frontier já teve sua nova geração apresentada na Argentina, onde será fabricada (encerrando a produção da atual geração no Paraná). Mas essa picape só vem em 2018. E sua plataforma será compartilhada com a Renault e até com a Mercedes-Benz, que vai lançar uma picape de luxo. Até lá, a atual Frontier vai ficar cada vez mais desatualizada. Para enfrentar a situação, o máximo que podemos esperar da Nissan é a importação da Hilux mexicana topo de linha.
Quanto às francesas, a Renault e a Peugeot estão em rumos completamente opostos no que diz respeito às picapes – a primeira subindo, a segunda caindo.
Mais pragmática que a Fiat, a Renault foi a pioneira na fabricação de uma picape derivada de crossover. Assim, a Oroch, baseada no Duster, chegou vários meses antes e faz sucesso. Ela disputa pau a pau as vendas com as consagradas Amarok e Ranger, de categoria superior. A Oroch não tem o mesmo requinte técnico da Toro, mas é bem feita e cumpre bem seu papel, por ser a opção mais barata de picape cabine dupla com espaço interno decente. Melhor que isso: em 2018 vai entrar forte no mercado das médias com a novíssima Alaskan, usando a mesma plataforma da nova Frontier.
Já a Peugeot, estreou muito bem no Brasil, nos anos 1990, com a picape 504. Robusta, tinha capacidade para transportar 1,3 tonelada, motor 2.3 a diesel e tração 4×4. Uma picape com a cara do Brasil e que deixou saudades. Tinha versões de cabine simples e cabine dupla e era derivada do sedã 504. Ela foi produzida de 1992 a 1999. Em 2010, a Peugeot substituiu a valente 504 pela Hoggar, que tinha caçamba menor (1.151 litros de capacidade), uma cabine apertada (era derivada do 207 com soluções técnicas do Partner) e motores flex 1.4 e 1.6. Durou somente até a metade de 2014.
Por essas e outras, a Fiat continua sambando na cara das demais montadoras quando o assunto é picape no Brasil.