02/05/2021 - 16:00
Eles largaram atrás de muita gente na corrida pelo curso superior e encontraram mais obstáculos na pista. Em meio à ameaça de um vírus, conseguiram vagas em universidades públicas do Brasil. Agora, querem levar para lá outros jovens que saíram da disputa por falta de oportunidades.
Ângelo, Felipe e Luiza estudaram a vida toda em escolas públicas, onde pouco ouviam falar de planos para continuar os estudos além do ensino médio. Moradores da periferia, quase não tinham referência de alguém que tivesse chegado à universidade.
O esforço individual fez a diferença. Mas a trajetória poderia ter sido igual à de milhares de jovens que largam o estudo para trabalhar se não fossem empurrões: um professor especial, o olhar da amiga para as redações, um chip com internet da escola.
Primeiro universitário da família, Ângelo Tavares, de 20 anos, vai cursar Desevolvimento Rural na Universidade Federal do Pará (UFPA). Morador da periferia paulistana, Felipe Cabral, de 19, será engenheiro eletricista pela Universidade de São Paulo (USP), a melhor do País. E Luiza Lopes, de 18, representa as poucas mulheres em um curso de tecnologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
‘Era a única oportunidade de estudar’
Ex-aluno de uma escola estadual, Felipe Cabral, de 19 anos, mal sabia, na época do ensino médio, o que era a Universidade de São Paulo (USP). Passou a conhecer – e desejar – a USP depois que entrou em um cursinho popular, no ano passado. Em março, a pandemia parecia mais um obstáculo.
“Foi um baque porque não tinha computador.” Onde todos viam só dificuldades, Felipe achou uma chance: jovem aprendiz em uma empresa, ele foi dispensado do trabalho presencial, mas continuou recebendo. “Virou uma chave na minha cabeça. Seria a única oportunidade de não trabalhar e manter o foco nos estudos. Se antes eu já estudava bastante, teria de estudar o dobro.” Aos sábados, assistia às aulas do Curso Mafalda pelo celular e, durante a semana, estudava com apostilas.
A sombra do desemprego quase o tirou da corrida. O contrato de trabalho terminou e Felipe chegou a pensar em buscar outra renda, durante a 2.ª fase da Fuvest, para ajudar a mãe, auxiliar de serviços gerais, a pagar as contas. A família, com dois irmãos mais novos, segurou as pontas. Quem deu a notícia da aprovação foi um tutor do cursinho, que virou amigo. “Nem acreditava, olhava meu nome na lista, conferia o CPF.” Não pode ser outro Felipe Rodrigues Cabral?, indagava.
Agora, quer pisar na universidade que só conhece por fotos. “Nos primeiros dias vou ter de dormir lá para ver tudo.” E, nos planos, também está ingressar em um cursinho popular, dessa vez como monitor. “Para devolver o que me foi dado.”
‘Vi meu nome na lista e comecei a chorar’
A primeira lembrança que Ângelo Tavares, de 20 anos, tem da Universidade Federal do Pará (UFPA) é de quando, criança, acompanhou a tia em um hospital no câmpus. “Achei a coisa mais incrível do mundo, lindo. Meu sonho virou ingressar na UFPA.” Morador de Bujaru, cidade de menos de 30 mil habitantes a 90 km de Belém, ele é o primeiro da família a entrar em uma universidade.
Até lá o caminho foi sinuoso. Em 2019, o jovem estudava em um cursinho popular da rede Emancipa, mas acabou perdendo o prazo de inscrição do vestibular. Sem internet em casa, pensou em desistir várias vezes. Em 2020, usava apostilas e livros que tinha recebido no ano anterior. O acesso a materiais aumentou quando recebeu, do instituto federal onde fazia curso técnico, um chip para aulas remotas. Foi então que passou a ter internet no celular e assistir a vídeos online.
Com uma vizinha, aluna de graduação da UFPA, Ângelo treinava as redações. As lacunas da formação em Exatas também não eram pequenas. “Na escola, quase não tive professor de Física.” Em janeiro, fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em meio ao agravamento da pandemia no Brasil. E, no dia do resultado do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), foi até a casa da amiga para acessarem juntos. “Ficávamos atualizando o site toda hora. Quando vi meu nome ali, comecei a chorar.”
Como manda a tradição no Pará, a comemoração foi com ovos, farinha e uma marchinha do cantor de carimbó, Pinduca, que diz: “Alô, alô, alô papai/ Alô mamãe/ Põe a vitrola pra tocar/ Podem soltar foguetes/ Que eu passei no vestibular”. Todo sujo, Ângelo correu até o trabalho da mãe, diarista, para dar a notícia. Nem precisou falar nada. Naquele dia, a festa foi um almoço caprichado. “Quero aumentar a renda da casa”, diz o jovem, aprovado em Desenvolvimento Rural.
Para Ângelo, mais jovens de Bujaru hoje tentam ingressar no curso superior, mas poucos conseguem. “Muitos da minha sala, que estudaram comigo, desistiram desse sonho. Foram trabalhar, mudaram de cidade. Ou trabalham aqui, como trabalhadores informais, em lojas”, lamenta.
‘Sou a 1ª da família na universidade pública. Muitos nem tentam’
Na sala do vestibular, Luiza Lopes, de 18 anos, lembra de ter desejado boa sorte, em pensamento, aos candidatos. “Sabia que todos ali eram guerreiros, que conseguiram fazer uma prova em condições péssimas no meio de uma pandemia.” Em um ano de abstenção recorde no Enem e dificuldades de preparação para as provas, Luiza se sentia privilegiada por ter em casa um notebook e espaço para estudar.
Durante o ano, foram horas trancafiada no quarto. De dia, eram as matérias do ensino médio e do técnico. À noite, Luiza estudava para o vestibular. Todo sábado tinha aulas online no cursinho popular Mafalda e, aos domingos, fazia simulados. O resultado veio com quatro aprovações, que ela atribui ao esforço e a uma série de oportunidades.
Bolsista do Ismart, uma entidade privada de apoio a jovens talentos, Luiza teve até orientação sobre como organizar as tarefas. Já nas escolas públicas que frequentou, na zona leste paulistana, via pouco incentivo ao planejamento da carreira.
Na pandemia, com aulas online, ela até achou que seria mais fácil se dedicar, mas o emocional pesava às vezes. “Nem sempre estava bem para estudar, ver videoaulas. Tinha dias em que simplesmente não conseguia ficar no meu quarto.” Após uma maratona de provas Luiza foi colhendo, aos poucos, as aprovações.
Vieram as vagas no Instituto Mauá e no Insper, mas, sem bolsa de estudo, ela sabia que essas eram portas que ainda não poderia atravessar. Até que recebeu a notícia da aprovação no Instituto Federal de São Paulo e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a faculdade escolhida para estudar Sistemas de Informação.
“Fui a primeira da família a entrar em uma universidade pública. Muitos nem tentaram vestibular dizendo que não têm chance e isso é bem triste porque a universidade pública deveria ter acesso maior para nós, de periferia.” No curso, a jovem vê ainda poucas “Luizas” – a maioria são meninos brancos – e já pensa na próxima meta. “Agora, com a graduação na mão e mais oportunidades, pretendo seguir meu sonho de promover igualdade dentro da área de tecnologia.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.