21/07/2015 - 0:00
Os carros amam São Paulo. A cada dia, mais de 500 automóveis novos se somam à frota da cidade, que já reúne mais de 5,6 milhões de carros. Mas Sampa não ama os carros! Até porque, além dessa multidão de automóveis, tem que abrigar mais 1 milhão de motos e todos os outros tipos de transporte em seus 17.000 km de vias pavimentadas. A convivência entre carros, motos, ônibus, caminhões e bicicletas não é fácil. Por isso, de tempos em tempos, a grande metrópole tem sido sacudida por alguma medida do prefeito de plantão contra o automóvel. Para os usuários desses veículos que normalmente carregam apenas uma pessoa (embora tenham capacidade para cinco), São Paulo odeia carros.
A última e atual polêmica é a redução da velocidade máxima das marginais Tietê e Pinheiros de 90 para 70 km/h nas pistas expressas e de 70 para 50 km/h nas pistas locais (que dão acesso a ruas muito menores e mais estreitas onde se pode circular a 60 km/h). Segundo a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), a redução das velocidades vai frear a sanguinolenta estatística de mortes no trânsito. Em 2014, as marginais (que têm esse nome porque margeiam os poluídos rios Tietê e Pinheiros) abrigaram 73 das mais de 1.300 mortes ocorridas no trânsito paulistano.
A Prefeitura desconta os transtornos causados pelos carros emitindo milhões de multas aos usuários. Com uma impressionante rede de radares eletrônicos instalados pela cidade, as multas se transformaram numa indústria que arrecadou R$ 852,6 milhões em 2014 e R$ 850,5 milhões em 2013. O total de multas já ultrapassou a casa de 10,6 milhões/ano, sendo mais de 3,1 milhões somente por excesso de velocidade.
Evidentemente, nenhuma montadora quer abrir mão de um mercado de 186 mil carros/ano. Isso em números do ano passado, quando a crise já estava aí, pois em 2009, quando havia crédito fácil para a compra de veículos, o mercado foi de 220,8 mil carros. Como um casal que inicialmente se viu apaixonado e fechou os olhos para os problemas, São Paulo e os carros passaram de uma relação tórrida e exagerada, que durou dos anos 1940 até meados dos anos 1970, para uma convivência insuportável nas últimas duas décadas.
Mas vamos combinar que ambos (Sampa e os carros) abusaram da sorte quando tudo ia bem, quando o espaço parecia ser suficiente para todos. Foi uma farra que começou no pós-guerra (1945). A chegada da indústria automobilística, combinada com a pujança da Pauliceia, simplesmente transformou o carro como “dono” da cidade. Já em 1967 a metrópole começou a se transformar para abrigar os milhares de carros que chegavam a cada ano. Eles tomaram conta das ruas de tal forma que havia trechos em que só os bondes trafegavam em sentido oposto ao dos carros.
Em 1967, a Prefeitura criou a Radial Leste, uma avenida que liga o centro da cidade à populosa Zona Leste. No mesmo ano, decidiu alargar a Avenida Rebouças, uma via que une a Marginal Tietê a três vias importantes já naquela época: Avenida Paulista, Rua da Consolação (também desemboca no Centro) e Avenida Doutor Arnaldo. Um ano depois, a Prefeitura decretou o fim do serviço de bondes. Estava definitivamente instaurado o domínio do automóvel nas ruas de São Paulo.
Em 1970, depois de presentear 23 membros da Seleção Brasileira tricampeã de futebol no México com 23 Volkswagen Fusca (mais alguns carros nas ruas), o prefeito Paulo Maluf decidiu acelerar as obras do famoso Minhocão — o perfeito monumento de desconstrução da vida de uma cidade para dar mais espaço ao automóvel. Batizado de Elevado Costa e Silva, para prestar homenagem ao segundo general da “revolução” de 1964 (que instaurou uma ditadura de duas décadas no Brasil), o Minhocão foi finalizado em apenas 11 meses (a tempo de ser inaugurado por Maluf, que logo deixaria o cargo) e inaugurado no dia 25 de janeiro de 1971. O Minhocão acabou com toda a vida cultural que havia na Avenida São João, então repleta de cinemas e teatros. Era preciso dar lugar aos carros!
Curiosamente, já no dia de sua inauguração, um Fusca (não consta que era um dos presenteados pelo alcaide) quebrou em cima da via e criou o primeiro congestionamento do Elevado. Era um sinal de que as coisas poderiam não sair como estavam planejadas. Hoje, o Minhocão liga diretamente a Zona Oeste à Avenida Radial Leste, criando o que a Prefeitura chama de Ligação Leste-Oeste. São Paulo tem também a Ligação Norte-Sul, que começa na Avenida Santos Dumont (perto do Aeroporto Campo de Marte), se estende pela Avenida Tiradentes, passava por toda a Avenida 23 de Maio, contorna o Aeroporto de Congonhas, segue pela Avenida Washington Luís e vai desembocar perto de Interlagos. Ao largo dessas duas ligações que se cruzam no Centro, as marginais Tietê e Pinheiros se encontram no Cebolão, onde os rios afluem, dando início à Rodovia Castelo Branco (outro general-presidente), uma delas vindo da Zona Leste, passando pela Zona Norte e terminando na Zona Oeste, e a outra vindo da Zona Sul e terminando na Zona Oeste.
Mas esse eficiente emaranhado de vias não foi suficiente. Tanto que em 2002 o governo paulista finalmente deu uma mão à cidade e entregou o primeiro trecho do Rodoanel, uma estrada que dá a volta em toda a cidade e teve como objetivo tirar os caminhões das marginais. Quando o primeiro trecho da Marginal Tietê foi inaugurado, em 1970, não havia preocupação com o limite de velocidade. Mesmo em 1990, quando São Paulo tinha uma frota de “apenas” 3,7 milhões de carros, era comum atravessar as marginais a 120 km/h em alguns trechos. Um absurdo! Assim, a velocidade de 90 e 70 km/h parecia adequada, pois a atenção das pessoas estava em outros fatos.
Ainda sem ódio aos carros, mas já incomodada com eles, Sampa inaugurou em 1977 os primeiros corredores de ônibus. A partir daí os problemas foram se intensificando, pois os carros não pararam de chegar, a população não parou de crescer e a disputa por espaço se transformou numa batalha diária. Em 1997, o prefeito Celso Pitta encampou uma ideia do secretário do Meio Ambiente, Fábio Feldman, e instituiu demagogicamente o rodízio de carros para reduzir a poluição. Portanto, a cada dia, carros com dois finais de placas não podem circular numa região fictícia chamada de “centro expandido” em dois horários de pico: das 7 às 10 da manhã e das 17 às 20 horas. Como resultado, a cidade passou a ter quatro horários de pico! Carros novos, que não poluem, muitas vezes ficam parados, enquanto carros velhos, que poluem, circulam.
Em 2009, o prefeito Gilberto Kassab resolveu reduzir ainda mais o espaço dos carros, criando as ciclofaixas de lazer para uso de bicicletas em domingos e feriados. Inicialmente criticada, a ideia tem aprovação quase total da cidade atualmente. Mas foi o prefeito Fernando Haddad quem realmente declarou guerra aos carros na cidade de São Paulo. Em 2013, criou a Operação Dá Licença, introduzindo 220 km de faixas exclusivas para ônibus num trânsito onde não cabia nem mesmo uma bicicleta. Ops! Calma. Apertando dá! Ainda naquele ano, o alcaide decidiu ampliar de 63 para 400 km (até o fim deste ano) a malha de ciclovias em Sampa. Quase ninguém as usa em algumas áreas, mas Haddad não está nem aí. Se Berlin pode ter 700 km de ciclovias e Nova York convive com 650 km, São Paulo terá 400 km de ciclovias, doa a quem doer e custe o que custar.
Por causa de tudo isso, São Paulo hoje é uma cidade que odeia carros. E os usuários desse tipo de transporte, tremendamente egoísta, não podem mais sair de casa sem ouvir a Rádio Sul-América Trânsito (24 horas dedicada ao trânsito paulistano), nem sem ligar o aplicativo Waze em seu smartphone (para desviar dos piores trechos). Também não podem mais passar de 70 km/h nas marginais. Ou de 50 km/h, se estiverem numa pista local. Porque, apesar de tudo, ninguém quer estar metido num trânsito como o do dia 23 de maio de 2014, quando a CET registrou 344 km de congestionamento na cidade. Já está mais do que claro que São Paulo odeia os carros. Os carros, esses, precisam entender que seu amor não é mais correspondido.