22/04/2020 - 19:14
No auge desta crise global, não se tem registro de uma mulher com um mínimo de projeção que tenha ido a público para “fazer feio”, como diria minha avó. Ao contrário de muitos homens. E há exemplos extremos disso, como o do primeiro-ministro britânico Boris Johnson, obrigado a voltar atrás em suas bravatas quando foi contaminado pelo novo coronavírus. Ou os dos presidentes dos EUA, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro, que insistem em trafegar no universo paralelo da pandemia usando todo um vocabulário chulo (e muito masculino) para confrontar o inimigo que mal conhecem, e do qual desdenham enquanto contam os mortos.
Cada um tem lá o seu estilo de liderança. Homens, aliás, têm licença para liderar em modelos distintos, um espectro que vai do “deixa-que-eu-chuto” desses exemplos até o simpático-jovial do presidente francês Emmanuel Macron, que enfrenta a mesma pandemia com preocupação serena. Todos eles, autênticos e pessoais.
Mulheres, diferente disso, têm de caber no modelo tamanho único da líder amigável, firme porém suave, muito (!) eficiente no que faz, e, sobretudo, feminina. Quase maternal – mas não maternal demais. E bonita – mas não bonita demais. Porque se não for assim, vai sempre “fazer feio” – mais feio até do que qualquer homem esbravejando na porta do seu palácio (um parêntese necessário: alguém imagina uma mulher falando metade do que Bolsonaro fala e sobrevivendo um dia que seja no cargo?).
É impossível que esse estilo pasteurizado possa ser genuíno em mulheres e em situações tão diversas. Mas de novo, nestes dias difíceis que estamos atravessando, foi como apareceram na mídia (e para a opinião pública) a rainha Elizabeth da Inglaterra e a chanceler alemã Angela Merkel, ou as chefes de alguns dos países que melhor estão lidando com a pandemia – Finlândia, Nova Zelândia e Taiwan entre eles. Basta olhar o noticiário para conferir – não faltam menções à sensibilidade, empatia e “humanidade” dessas mulheres, como se fossem seus maiores (ou únicos) atributos que merecem destaque no meio da crise.
Com algumas exceções históricas, as mulheres conseguiram licença para exercer (alguma) liderança só muito recentemente, e não em todos os lugares, nem usando seu estilo pessoal se ele se afastar do modelo tamanho único. Para ocupar a liderança, é fato que operam sempre nos limites do perfeccionismo, porque sabem que não podem errar nem fraquejar – isso seria confirmar que não estão preparadas para aquela posição. Ainda assim, frequentemente têm de ouvir que são mandonas, carreiristas e mal-amadas; seus pares, com as mesmas atitudes, são inspiradores, ambiciosos e bem-sucedidos.
A carga mental gerada nessas mulheres para nunca “fazer feio”, mostram as pesquisas, é cruel. Em um livro ainda sem tradução para o português (“Dear Madam President”), a chefe de comunicação da campanha de Hillary Clinton à presidência em 2016 dá um testemunho imperdível de como a coisa acontece na prática. Jennifer Palmieri já havia coordenado a comunicação da Casa Branca durante a presidência de Barack Obama, o que lhe dá uma posição privilegiada para as observações que faz.
Em algumas passagens do relato, ela conta como as expectativas distorcidas do que seja uma mulher na liderança afetam até alguém com a experiência e a fibra de uma Hillary Clinton: a mesma candidata que apanhou durante toda a campanha por manter um tom arrogante e pouco emocional foi massacrada por ser emocional demais no discurso da derrota. Vai entender…
Se estamos na batalha por mais mulheres em posições de liderança para um mundo mais justo, é preciso considerar – e depressa – como acabar com o modelo de tamanho único dessa liderança. Há vários estilos – alguns mais enérgicos e outros mais lineares, alguns mais assertivos e outros mais acolhedores. Todos, genuínos – e, por isso mesmo, com a vantagem adicional de criar referências para outras mulheres. A igualdade de gênero precisa andar de mãos dadas com a diversidade o tempo todo, não custa lembrar.