30/03/2021 - 15:12
“Papai, você é um líder apenas quando está engravatado no escritório, onde todos falam que você é um exemplo de integridade, transparência e ética? Não deveria se comportar do mesmo jeito lá em casa e aqui no aeroporto?”.
Com essa frase – que ouvi enquanto estava na fila de embarque de um voo no antigo aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte – comecei um capítulo do livro O Caminho das Estrelas, publicado em 2008. Como o tema permanece mais atual do que nunca decidi recontar, nesta coluna, essa história que muito me incomodou.
Eu conhecia um dos personagens do diálogo, o vice-presidente de uma multinacional baseada em Minas Gerais. Mais: eu tinha acabado de conduzir um workshop para a cúpula dirigente dessa empresa e podia atestar a enorme discrepância entre o que ele apregoava junto aos seus colegas na empresa e o seu comportamento social.
Seu filho, bastante jovem, falou em alto e bom som para quem quisesse ouvir, ao perceber que o pai tentava “furar” a longa fila para o embarque. Triste e bastante emocionado, como se estivesse envergonhado, durante o voo ele veio me cumprimentar e me contou que havia convidado o filho para acompanhá-lo em uma viagem de negócios até Curitiba para tentar amenizar as queixas do jovem acerca de suas prolongadas ausências por motivos de trabalho. Confessou que o adolescente o havia chamado de “líder meia-boca”, o que muito o magoara. E resumiu sua angústia nesta pergunta: “Como ser um líder 24 horas e não apenas um líder em meio turno?”
A pergunta tem razão de ser, afinal a liderança não acontece apenas no trabalho. Muita gente, porém, exerce o papel de líder somente enquanto está no seu ambiente formal, no exercício do seu cargo, e se comporta de modo completamente diferente – às vezes até antagônico – em outras situações do cotidiano. Defende certas posições e valores quando usa o crachá da sua organização, mas adota atitudes opostas em casa, no elevador do prédio, com seus vizinhos, no clube, ou dentro de um táxi na hora do engarrafamento.
Aprender a exercer a liderança de forma coerente nas várias dimensões da vida é uma competência importante para quem pretende ser um líder inspirador. Mas não é a única: trata-se de um conjunto de atitudes que deve ser desenvolvido constantemente na busca da autoliderança, uma espécie de “meta competência” – data venia do meu querido amigo e educador Eugênio Mussak, o criador desse belo conceito.
O tema está bem evidente quando sabemos das notícias de pessoas que ensaiaram furar a fila da vacina contra a Covid-19. Esse paradoxo ético é bem profundo, pois não se trata apenas da separação de papéis do líder quando está atuando na empresa ou quando está em outras esferas da sua vida. Trata-se também do “lado sol” e do ”lado sombra” de cada um de nós. Como nos comportamos quando estamos sendo percebidos e o que, de fato, fazemos quando estamos sós.
O que você faria na realidade, caro leitor e estimada leitora, se tivesse a certeza da impunidade e se você fosse invisível ao olhar de terceiros? Esse dilema é brilhantemente abordado pelo professor Eduardo Giannetti no seu belo livro O Anel de Giges, que trata do comportamento humano quando percebe que vive numa cultura da impunidade.
O objeto que dá nome à obra vem da República, de Platão. Como provocação a Sócrates, defensor da ideia de que ser uma pessoa justa é um bem em si – ou seja, independe das vantagens que o comportamento acarreta -, Gláucon, irmão mais velho de Platão, conta a história de Giges, camponês que encontra um anel que lhe dá o poder de ser invisível. Isso lhe permitia fazer aquilo que todas as pessoas podem apenas sonhar: ir para qualquer lugar e fazer o que bem quisesse, sem receio de ser apanhado. Usou o poder do anel para enriquecer, roubar o que queria e se livrar de quem quer que atravessasse o seu caminho.
A lenda nos faz pensar sobre nossas ações. Será que não agiríamos como Giges se tivéssemos certeza de que ficaríamos impunes de qualquer dos nossos atos, mesmo que eles fossem imorais e ilegais? A reflexão serve para todas as situações de nosso dia a dia. Desde furar a fila no banco, estacionar em local proibido ou em vagas para deficientes, sonegar impostos, entre outras.
Agora voltando ao papel do líder. Acredito que liderança e ética caminham juntas. Tanto no ambiente profissional como no pessoal. Reputação é essencial. Um líder precisa criar uma cultura na qual as pessoas ajam com integridade full time. Uma gestão globalmente responsável influencia não somente seus funcionários, mas todos a sua volta. A ética precisa estar no centro de seus pensamentos, palavras e ações. Ou seja, um líder eficaz faz as coisas de forma correta e ética, sem apelar para os “jeitinhos” que podem criar danos irreparáveis a uma carreira, assim como destruir o valor, arduamente construído, de uma empresa.
- César Souza é cofundador e presidente do Grupo Empreenda, consultor e palestrante em Estratégia, Liderança, Clientividade e Inovação. Autor de “Seja o Líder que o Momento Exige” é também coautor do recém-lançado “Descubra o Craque que Há em Você” (Buzz,2020)