Se denúncia for aceita, seria o primeiro julgamento de um ex-presidente por tentativa de golpe. Bolsonaro tenta reverter situação, buscando anistia e mudança na Lei da Ficha Limpa.Pouco mais de dois anos após os atos golpistas e de um volume expressivo de denúncias e condenações ter atingido a massa de bolsonaristas que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, o sistema de Justiça brasileiro deu mais um passo para avaliar a responsabilização de membros do alto escalão político e militar acusados de comandar uma tentativa de golpe de Estado, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Nesta terça-feira (18/02), a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) denúncias contra 34 pessoas, incluindo Bolsonaro, que foi acusado de cinco crimes: organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Somadas, as penas máximas podem chegar a 43 anos de prisão.

As denúncias foram fatiadas em cinco peças, com o objetivo de agilizar a análise pelo STF. No grupo de Bolsonaro, também figuram os ex-ministros Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), – que está preso preventivamente –, Paulo Sérgio Nogueira (Defesa), Anderson Torres (Justiça) e Augusto Heleno do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o ex-comandante da Marinha Almir Garnier e o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem.

Agora caberá à Primeira Turma do STF avaliar se aceita a denúncia e torna Bolsonaro réu – e, nesse cenário, julgar o ex-presidente, em uma análise que deve transcorrer, pelo menos, até o final do ano, segundo avaliação de especialistas que acompanham a corte.

A Primeira Turma é formada pelos ministros Alexandre de Moraes, relator da denúncia, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Flávio Dino e Cristiano Zanin. O colegiado considera ampliar a frequência de suas reuniões – de a cada 15 dias para semanal – para agilizar a análise dos processos e tentar concluir o de Bolsonaro antes de 2026, um ano eleitoral.

O ex-presidente articula em frentes políticas e jurídicas para se defender da denúncia, tentar recuperar sua elegibilidade e se manter como candidato da direita, que já discute nomes alternativos para 2026, como o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O tensionamento com o Supremo faz parte dessa estratégia, e a Corte se virá nos próximos meses em um clima que pode lembrar o do julgamento do mensalão, ocorrido em 2012, analisando um caso complexo e com fortes reflexos políticos.

Em nota, a defesa de Bolsonaro afirmou que “não há qualquer mensagem do Presidente da República que embase a acusação, apesar de uma verdadeira devassa que foi feita em seus telefones pessoais”, e classificou a peça da PGR como “inepta” e “baseada numa única delação premiada”.

Como Bolsonaro se movimenta

O ex-presidente reuniu-se com congressistas da oposição nesta terça-feira em Brasília, antes da apresentação da denúncia, para buscar o apoio de partidos do centrão para duas propostas legislativas que podem indiretamente beneficiá-lo.

Uma delas é perdoar as condenações criminais dos envolvidos nos atos golpistas. Há alguns projetos de lei com esse teor tramitando no Congresso, e o mais avançado aguarda a instalação de uma comissão especial na Câmara para ser analisado.

Para fortalecer essa pauta, Bolsonaro e seu entorno tentam mobilizar sua base para ir às ruas apoiar a proposta de anistia em um ato no Rio de Janeiro no dia 16 de março.

Outra frente é tentar alterar a Lei da Ficha Limpa para reduzir de oito para dois anos o período de inelegibilidade de políticos condenados por abuso de poder político, abuso de poder econômico ou uso indevido dos meios de comunicação.

Bolsonaro está inelegível até 2030 após ter sido condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral em duas ações distintas: por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao atacar o sistema eleitoral em uma reunião com embaixadores do Palácio da Alvorada, e por abuso de poder político e econômico por ter transformado as comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro de 2022, em um comício eleitoral.

Após reunir-se com os congressistas da oposição, Bolsonaro afirmou que a Lei da Ficha Limpa “é usada para perseguir a direita”, e citou que os Estados Unidos não possuem uma norma do tipo. “Se tivesse, o [Donald] Trump estaria inelegível”, afirmou.

A mudança na lei o beneficiaria, já que a sua atual inelegibilidade começa a ser contada a partir do pleito de 2022, mas no momento há pouca chance de aprovação de uma iniciativa nesse sentido.

Cogitação ou preparação de golpe?

Na seara jurídica, um dos argumentos que devem ser explorados pela defesa de Bolsonaro será afirmar que não houve uma tentativa efetiva de golpe de Estado, e que, portanto, não haveria crime cometido.

Essa linha foi expressa, por exemplo, pelo filho do ex-presidente e senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ): “Por mais que seja repugnante pensar em matar alguém, isso não é crime”, escreveu ele no X em novembro, após a Polícia Federal (PF) ter deflagrado uma operação que investigou um plano de execução do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes.

Para embasar a denúncia contra o ex-presidente, a PGR baseou-se, entre outros elementos, em uma minuta de um decreto golpista localizada na residência de Anderson Torres, em mensagens trocadas entre militares que mencionavam o plano de execução de autoridades, e em documentos apreendidos em dispositivos usados pelo tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que fez um acordo de colaboração premiada.

Segundo o relatório da PF, a partir de mensagens trocadas por Cid e outros envolvidos na trama, há indícios de que Bolsonaro teria feito ajustes na minuta do decreto golpista, que decretava estado de defesa e criava uma comissão para revisar o resultado das eleições de 2022.

Diego Nunes, professor de direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e organizador de um livro sobre a lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, avalia à DW ser “pouco provável” que investigações de crimes dessa natureza encontrem frases expressas de autoridades como “façam um golpe de Estado”, e que nesse cenário cabe ao Ministério Público apontar um “conjunto de elementos contextuais” que consigam representar uma cadeia de comando e execução para um golpe.

Um desses elementos contextuais pode ter surgido em uma reunião convocada por Bolsonaro com os comandantes das Forças Armadas na qual a apontada minuta do golpe teria sido discutida. Segundo um depoimento à PF do então comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista Junior, o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, ameaçou prender Bolsonaro se ele levasse adiante a ideia de decretar estado de sítio, estado de defesa ou Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

“O STF terá de marcar a separação entre atos preparatórios e início de execução. A se confirmar, porém, que houve ordem ao comandante do Exército, será impossível falar em mera cogitação”, afirma à DW Davi Tangerino, professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Teste para uma lei relativamente nova

Outro aspecto que agrega importância à análise da denúncia contra Bolsonaro e de um eventual julgamento do ex-presidente é que a lei dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, que revogou a Lei de Segurança Nacional da época da ditadura, é relativamente nova, de 2021.

O primeiro caso de político acusado com base na norma foi o do ex-deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo STF em abril de 2022 pelo crime de ameaça ao Estado Democrático de Direito.

Em seguida, aponta Nunes, vieram as diversas condenações de bolsonaristas que invadiram as sedes dos Três Poderes. Agora, será a primeira vez que um ex-presidente ou ex-ministros poderão vir a ser enquadrados na nova norma.

“Seria a primeira vez em que um ex-presidente estaria sendo julgado por um tribunal regular por conta do cometimento de uma tentativa de golpe de Estado. O Brasil, na sua história, é farto de tentativas de golpe, principalmente quarteladas feitas pelo pelos militares, mas nunca houve um julgamento desse tipo”, afirma.

Ele prevê que isso irá testar o Poder Judiciário, e em particular o Supremo Tribunal Federal, na sua capacidade de conseguir realizar um julgamento imparcial e dentro das regras. “O tribunal vai ter que, estrategicamente, pautar as datas dos atos processuais e do julgamento a ponto de conseguir minimamente se explicar para a opinião pública – porque não bastará para ele apenas fazer justiça, ele vai ter que ser compreendido fazendo justiça. Vai existir uma mediação com a opinião pública, que não se dá de um dia para o outro”, afirma.

Tangerino avalia que, tão importante quanto a denúncia contra Bolsonaro, seria a responsabilização de militares de alta patente. “É a primeira vez na história do Brasil e é muito simbólico. Dá importante sinalização de que tentativas de golpe não serão aceitas e não pouparão ninguém.”