Desde que foi pega traindo a confiança do consumidor num teste de emissões de NOx (óxido de nitrogênio) nos Estados Unidos, a Volkswagen está sendo tratada como uma espécie de Geni da indústria automobilística. Ao manipular os índices de emissões de NOx de 482.000 carros com motores 4 cilindros “clean diesel” (em versões dos VW Passat, Jetta, Golf, Beetle e Audi A3), a montadora alemã deu margem a estimativas de que 11 milhões de automóveis do grupo estejam jogando entre 237.161 e 948.691 toneladas de NOx por ano no planeta.

Como o NOx é mais danoso (a curto prazo) ao ser humano do que o CO2 (dióxido de carbono), que é responsável pelo aquecimento global, a derrapada ética da Volkswagen provocou a ira da imprensa alemã. A revista semanal Der Spiegel fez uma capa demolidora. Transformou um Fusca em esquife, carregado por seis homens de luto, e foi lacônica no título: “Der Selbstmord” (O Suicídio). Mas, apesar da indignação alemã pela maneira irresponsável como alguns dirigentes trataram um ícone do país, a Volkswagen vai continuar vendendo carros em todo o planeta. É difícil prever o tamanho do estrago que os testes de emissões pode provocar nas vendas da Volks, embora seu valor de mercado já tenha recuado quase 40% em duas semanas. Suas ações na Bolsa de Frankfurt, que eram vendidas a 167,60 euros no dia 17/09, estavam cotadas 102,00 euros no dia 1º/10. De qualquer forma, a companhia ainda valia 46,672 bilhões de euros no final da semana passada – e muitos ainda apostam que ela não foi a única a mentir para os especialistas.

O escândalo do “dieselgate” dá margem para inúmeras interpretações. Por isso, apesar da má conduta ética da montadora, quero lançar um olhar mais abrangente sobre o caso. Na minha opinião, a Volkswagen mergulhou fundo demais no ideal capitalista de produzir e vender cada vez mais. Afinal, em 2014 o Volkswagen Group (9.496.891 veículos vendidos) já era maior que o Toyota Group (8.657.903) e a General Motors Company (7.362.897). Com um crescimento de 5,1% em relação a 2013 (quando também terminou na liderança), o Volkswagen Group detinha 12,98% do mercado global de automóveis no final do ano passado, contra 11,83% do Toyota Group e 10,02% da GM Company. Mas Wolfsburg queria mais. Pelo menos até antes do escândalo dos motores a diesel, o objetivo da empresa era transformar a marca Volkswagen na líder mundial de vendas de automóveis até 2018. Contando só os modelos que trazem os logotipos VW, a marca terminou a temporada de 2014 em segundo lugar, com 6.022.625 emplacamentos, contra 6.384.760 da líder Toyota. A Ford aparecia em terceiro, com 5.413.255, e a Chevrolet em quarto, com 4.108.397.

Evidentemente, a Volkswagen não tinha como objetivo intoxicar pessoas, mas sim vender mais carros. E na ânsia de vender mais e mais e mais, sempre e sempre e sempre, inúmeras empresas do mundo inteiro (também de todos os segmentos) estão envenenando o planeta. A emissão de CO2 – principal vilão do aquecimento global – tem subido a um ritmo sem precedentes desde 1984. Mas, segundo um relatório do órgão americano EIA (Energy Information Administration), o uso de motores a gasolina e a diesel para transporte nos Estados Unidos resultou, em 2014, na emissão de 1,075 bilhão de toneladas e 444 milhões de toneladas de CO2, respectivamente, totalizando 1,519 bilhão de toneladas de CO2. Isso equivale a 83% do total de emissões de CO2 por todo o setor de transporte dos EUA. Entretanto, essa poluição absurda representou apenas 28% de todo o dióxido de carbono que o setor industrial de Tio Sam jogou na atmosfera no ano passado.

E por que isso acontece? Porque no ritmo industrial dos últimos 40 ou 50 anos, os países se convencionaram a seguir um padrão de aceitação de venenos, pesticidas, gases, acidentes e até assassinatos que levou nosso modo de vida (e morte) a se transformar naquilo que o filósofo alemão Ulrich Beck batizou de Sociedade de Risco. Na visão de Beck, a definição de limites de tolerância ou a estipulação de valores máximos levou à criação de uma indústria do risco:

Limites de tolerância para vestígios poluentes e tóxicos “admissíveis” no ar, na água e nos alimentos têm, em relação à distribuição de riscos, um significado comparável ao que tem o princípio de desempenho para a distribuição desigual de riqueza: eles simultaneamente admitem as emissões tóxicas e legitimam-na dentro dos limites que estipula. Quem quer que limite a poluição, estará fatalmente consentindo com ela. Aquilo que ainda é admissível e, por sua definição em termos sociais, “inofensivo” – independente do quão daninho seja.

Particularmente, enquanto todo mundo atira contra a Volks, vejo uma oportunidade para que a indústria automobilística seja repensada. Afinal, por mais que a tecnologia se modifique (e agora ficou comprovado isso), os motores a diesel nunca conseguirão ser menos poluentes do que os alimentados por gasolina. O diesel é largamente utilizado nos carros de passeio dos Estados Unidos e da Europa porque é mais barato. E todo mundo quer gastar menos (não necessariamente poluir menos). Mas, com a emissão de 1,075 bilhão de toneladas métricas de CO2 a cada ano só nos Estados Unidos, está claro que os motores a gasolina também não resolvem a questão ambiental. Por isso, a verdadeira guinada nessa questão não será apenas uma exemplar punição à Volkswagen, mas sim a adoção de políticas de incentivo real à produção e comercialização de veículos elétricos. Só assim estaríamos falando de carros que não poluem.

Modelos que circulam sem poluir a atmosfera já são comuns em muitas marcas, mas os números são ridiculamente pequenos quando comparados aos poluidores. Tanto nos Estados Unidos (30.200 emplacamentos em 2014) quanto na Europa (15.158), o carro elétrico mais vendido é o Nissan Leaf. Nos EUA, ele é seguido pelo Chevrolet Volt (18.805 emplacamentos) e pelo Tesla Model S (18.480). No mercado europeu, logo atrás do Leaf vêm o Renault Zoe (11.090 vendas) e o Tesla Model S (8.841). Com relação à Volkswagen, o e-Golf vendeu apenas 357 unidades em território americano no ano passado. Na Europa, seu desempenho com carros elétricos é melhor, ocupando o quarto lugar com o e-Up (5.450 vendas) e o sexto com o e-Golf (3.328).

Portanto, o risco à saúde humana só desapareceria (teoricamente) se a tolerância à poluição fosse reduzida a zero. Como eu já disse, Beck identificou uma indústria do risco, pois é preciso engenharia e investimentos para que os níveis de NOx ou CO2 que saem dos escapamentos dos carros passem de, digamos, 100 g/km para 80 g/km. Para movimentar a economia, portanto, o risco é ótimo. Em seu livro Futuros Imaginários: das Máquinas Pensantes à Aldeia Global, Richard Barbrook afirma que “o presente é compreendido como o futuro embrionário e o futuro ilumina o potencial do presente”. Partindo dessa premissa, um professor da Universidade Mackenzie, Vinícius Prates, escreveu em 2013 uma tese que talvez exemplifique a forma como olhamos para os automóveis que desejamos (ou como as montadoras querem que a gente os veja):

Apesar dos muitos milhões de carros poluentes fabricados por ano, a indústria automobilística se caracteriza do ponto de vista do enunciador por este futuro que ilumina e explica o presente: ou seja, ela é figurada como sustentável pelo que um dia ocorrerá. Assim, não importa quantas unidades movidas a gasolina sejam fabricadas (e as consequentes críticas dos ambientalistas antagonistas), o enunciador consegue tamponar a falta constitutiva da crise ambiental por uma operação de deslizamentos de sentidos – os milhões de carros “sujos” (que vemos com nossos olhos) saindo das fábricas apenas preparariam o glorioso porvir de um capitalismo sem sintomas (que vemos com nossa ideologia), repleto de máquinas ecologicamente limpas.

Se liderar uma cruzada mundial de incentivo aos veículos elétricos, a Volkswagen tem uma chance de propor um mundo melhor, renascer depois do “suicídio” e voltar a dizer um dia, em qualquer língua: “Você conhece, você confia”.

QUANTO VENDEM OS CARROS QUE NÃO POLUEM

MODELO                            EUROPA                      EUA                       TOTAL

Nissan Leaf                      15.158                          30.200                 45.358

Chevrolet Volt                                                        18.805                 18.805

Renault Zoe                      11.090                                                       11.090

Tesla Model S                   8.841                                                         8.841

BMW i3                                                                    6.092                    6.092

Volkswagen e-Up             5.450                                                        5.450

Smart Fortwo ED              2.726                           2.594                   5.320

Renault Kangoo ZE          4.197                                                         4.197

Volkswagen e-Golf          3.328                           357                       3.685

Nissan e-NV200               2.300                                                         2.300

Renault Twizy                   2.293                                                         2.293

Ford Focus Electric         203                                1.964                  2.167

Toyota RAV4 EV                                                      1.184                  1.184

Bolloré Blue Car              1.170                                                          1.170

Chevrolet Spark EV                                                1.145                  1.145

Mercedes Classe B ED   150                                774                     924

Mitsubishi I-Miev               675                               196                     871

Citroën C-Zero                  613                                                            613

Peugeot iOn                      570                                                            570

Kia Soul EV                        468                                                            468

Goupil G3                            451                                                            451

Honda Fit EV                                                            407                      407

Peugeot Partner EV         309                                                           309

Citroën Berlingo EV         187                                                            187

Renault Fluence ZE           98                                                             98

BYD e6                                 54                                                             54

TOTAL 2014                       59.683                       63.718                 124.049